domingo, 19 de julho de 2009

ETAPA - 6



Os caminhos compridos e planos, monótonos, as suaves inclinações, as árvores isoladas e um indomável vento que nos fustiga a cara e nos impede de andar, foram as características desta longa etapa que só terminou em Hospital de Órbigo.
As bonitas construções de adobe e nomes como El Burgo Ranero e Mansilha de las Mulas, outrora importante centro pecuário, a crer na onomástica, ficaram-me na memória pelo nome insólito que possuem. Depois desta aldeia que comecei a avistar lá ao longe, como uma miragem, e que parecia ser sempre distante, o caminho, logo à saída, depois de passar a ponte de pedra, mete à esquerda e segue paralelo à estrada. Cruza-se novamente com ela em Puente de Villarente e, enquanto esperávamos pelos elementos do grupo que habitualmente andavam mais à frente, que, paradoxalmente, por essa razão se perderam de nós, já que enquanto nos esperavam acabaram por ser ultrapassados sem se aperceberem, também já me perdi, ah!... dizia eu que, aí, em Puente de Villarente, saboreámos o sol da manhã numa bela esplanada, e matei mais uma vez a interminável fome, com mais um bocadilho, um gelado, umas bolachas,… eu sei lá o que comi: uma fome imorredoura acompanhou-me durante todo o tempo.
Recordo este troço do caminho como perigoso, já que se confunde com a estrada nacional, muito movimentada, e exige muita atenção ao ser percorrido. Mas também aí existem virtudes, como na vida, mesmo nas depressões existe sempre uma vantagem, há que sabê-las aproveitar, neste caso eram de terceira ordem, simplesmente gustativas, aí, comprámos umas maravilhosas cerejas, eu achei maravilhosas, mas já não sei se eram exactamente assim, se era a minha fome permanente que as considerava como tal, é como diz o ditado: quando há fome não há ruim pão. E ao longo dos caminhos poeirentos lá as fomos depenicando, exactamente como os pássaros, até ao “Alto del Portilho” de cuja colina se pode avistar a cidade de Leon, que, na primeira vista, impressiona pelas cores fores quentes dos seus altos prédios.
De Leon, sede da famosa VII Legião Romana, não esqueço as boas-vindas dadas pela bonita Ponte Castro, não esqueço a monumentalidade do gótico na catedral, o espectáculo de cor dos seus vitrais, não esqueço as suas muralhas romanas, as suas ruas, estreitas, de outra época, da época em não havia automóveis, e as necessidades dos homens eram outras: protecção gregária. Não esqueço os leões de ar pensante sentados em pequenos pilares rectangulares, que não metem medo a ninguém apesar de unhados, e ladeiam a capelinha do século XII, lá bem no centro do velho burgo, exibindo orgulhosamente a sua coroa de rei a encimar um vaso de lírios, para não esquecer a ascendência à coroa francesa, em pergaminho desenrolado, cinzelada por esmeradas e nobres mãos de canteiro.
Não olvido o marco indicador do caminho que diz 330 Km.
A partir da catedral seguimos as conchas de bronze cravadas no solo, e antes de entrarmos mais uma vez, no caminho da estrelas, nos enigmáticos córregos da história, antes de passar sem ver a Vigem del Caminho, padroeira de Leon, antes de nos refrescarmos numa maravilhosa fonte de águas cristalinas, tivemos que nos embebedar com a beleza do comprido frontispício do antigo Hospital de S. Marcos, actualmente Parador Nacional, ou seja, hotel de primeira categoria. Perante tamanha harmonia, perante tanta imagem em alto-relevo, nasce a vontade de querer saber mais, de querer saber tudo (quem? como? quando? porquê?), vontade essa frustrada, naturalmente, pelas das circunstâncias da viagem, mas porque as coisas do espírito não entendem as razões da física, um nervoso miudinho, stressante, toma conta de mim, impede-me de raciocinar convenientemente e sinto vontade de sair o mais rápido possível, depois de mais uma foto de grupo.
Mas antes de chegar ao destino, ainda me estava reservado saborear, no pico do calor, o melhor fino alguma vez bebido, não que a cerveja fosse da melhor qualidade, era normal, creio que tinha nome de santo, mas com garganta ressequida como tinha, desidratado como estava, já que me tinha esquecido de encher as vasilhas do quadro da bicicleta na última fonte encontrada, nada melhor que a cerveja e, dificilmente esquecerei a frescura dessa caña, emborcada, quase de uma só vez, num pequeno café em Villadangos del Páramo.
Em Hospital de Órbigo chegámos, já tarde, e uma chuva miudinha parecia anunciar a mudança de tempo.
Quando se desemboca no fim da rua, fica-se impressionado pela singularidade da comprida ponte sobre o rio Órbigo: é curva, inclinada, e de olhais desiguais. É inevitável recordar o famoso cavaleiro “D. Mas de Quiñones” e os seus feitos, porque a pedra granítica erguida logo à sua entrada, num galego medieval, talvez, galaico-português, não sou especialista, faz questão de o descrever. Ali, pela superioridade da sua dama, Leonor Tovar, e o seu amor por ela, este cavaleiro, à luz desta época adjectivado de quixotesco, lutou com trezentas lanças de outros tantos cavaleiros, desafiados ao atravessar da ponte. Quem quisesse evitar o confronto atravessava o rio pelo seu leito sendo, claro! ignominiosamente considerado cobarde. Por este facto, esta ponte é conhecida “Ponte da Passagem Honrosa" e, ainda hoje, esse povo que não esquece a história faz questão de preservar esse acontecimento, promovendo, tanto quanto sei anualmente, justas medievais a jusante da ponte, em pleno leito do rio, que por bem pouco não presenciamos, já que se realizavam no dia seguinte.

BUEN CAMIÑO!

2 comentários:

Wanda Wenceslau disse...

Olá!
Muito bem detalhada essa viagem!Aliás, como tudo que você escreve! Suas descrições e narrativas são ricas e incentivam o imaginário!
Acho que já começo a sentir a dor nos pés...(risos), continuo com a tua próxima narrativa.
Abraço
Wanda

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Amigo:

"Vi" a sua descrição dos caminhos como se fora o desenrolar de um filme. Até "senti" a sua permanente fome e , mais ainda, a sua tremenda sede. Comi os "bocadilhos" e bebi do seu fino.
Obrigada pela partilha.
Júlia

PS - Vou estar ausente a partir de hoje até 15 de Agosto.
Um abraço.