Às vezes, nos papéis amarelentos que guardo religiosamento, descubro coisas escritas num outro tempo. Poemas, pensamentos, cartas que nunca enviei a ninguém e que guardo na mísera bagagem da minha materialidade.
Relei-os sempre, não sei porquê, acho que procuro neles reencontros de mim, códigos postais de outras existências, direções há muito tempo apartadas desta minha busca, que já sinto em carne viva. Neles descubro indícios de levantamentos populares dos meus sentires autistas, manifestações proíbidas que não me atrevo o contar, motins de mim próprio que sempre foram reprimidos. Nunca ninguém os lerá, morrerão comigo, sepultá-los-ei. Enterrá-los-ei com as devidas exéquias ritualísticas, que não deixarei de cumprir.
Guardá-los-ei não sei até quando, talvez até sentir que já não são meus, até achar que já não são os meus alicerces, até achar que já não são os fios que me guiaram, ou me manobraram, não sei bem, durante muito tempo. Guardá-los-ei até achar que já não são a minha genealogia.
Nada valem! Não passam de constatações óbvias, são bárbaros, roupagens pré-históricas de mim, mas, mesmo assim, não deixam de ser pestanejares sobre e minha existência, não deixam de existir palavras, apesar de ocas, sem miolo, deste reino ao qual gosto de pertencer.
Não deixam de ser nevoeiros sombrios de uma existência que, apesar de tudo, foi feliz.
+ POESIA [Colectivo Penêdo] #23
Há 1 semana
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