quinta-feira, 11 de abril de 2013

Um romance alegórico



Um romance alegórico

Este romance de António Sá Gué conjuga várias linhas de força que o magnificam. Externamente, cada capítulo é precedido de um poema, cuja função emotiva nos dá, em primeira pessoa, um sujeito depois narrado na terceira. Conjunto de vinte e três peças, articula-se, aqui, uma biografia psicológica. Esse direito à palavra ‒ qual didascália no teatro do ser, não só definindo uma voz, mas orientando a leitura ‒ é um traço de personagem tenaz procurando domar o seu destino. Rescende aos heróis antigos, e não seria difícil encontrar concordâncias.
O ponto de partida e chegada é o mesmo: a geografia moncorvense, a pouco e pouco, esclarecendo-se; diferentes os pontos de uma existência, quando se é jovem ou já muito sofrido: vimos dos cumes altivos de pegureiro às fundas gargantas de linfa onde se percebe melhor o vivido.
Desde o início, pressente-se uma indistinção, na silhueta de Manuel, ao longe, que o pai reconhece pela «andadura». É um índice, ou indício, narrativo forte, também porque vai alterar a regularidade das coisas. Numa diegese com poucos incidentes, e gloriosos acidentes da natureza e linguagem transmontanas, inscreve-se vingança, e decide-se futuro, entre Março e Novembro de 1881, quando, acusado de incendiário por Maria das Dores, Manuel António Morgado, de 20 anos, pastor e camponês, declina identidade em seu irónico apelido: embora inocente, perde-se no conceito do povo, de iguais que o juram criminoso. É bem certo que Deus anda com o Diabo às costas, reiterando «antigo ditado».
Essa perda do (bom) nome anuncia outras piores. Afasta-se, assim, dos montes, trocados pela cadeia da Relação do Porto; degredam-no da pátria para Ultramar então na moda, quando conferências internacionais ‒ alude-se à de Berlim ‒ cobiçam as nossas possessões. Se a Justiça lhe acrescenta uma naturalidade, Carviçais, já Manuel perdeu o pé da própria realidade, e tão indiferente lhe e nos parece o silvo da locomotiva na linha do Douro (cujos primeiros troços são de 1875, e, no dealbar de 80, chegam à Régua e ao Pinhão) como a estada africana, onde se vê amputado de uma perna. A figura dissolve-se em corrente de consciência, que o narrador persegue, enquadra na atmosfera da época, deseja interpretar, num universo coetâneo rasgado em cores impressionistas (quase logo, pontilistas) e tentames simbolistas nas artes plásticas e na poesia. À luz destas homologias, é um romance fora do nosso tempo, a requerer demorada exegese ‒ e mais se olhássemos à teoria da vontade em Schopenahuaer, ao desvão do inconsciente freudiano…
Do terroso naturalista passa-se, entretanto, à ideia, a uma conceptualização que, experimentado o Brasil ‒ outro destino nacional, onde amealha dinheiro, mas retorna-viagem, quando a mãe adoece, que já não consegue ver viva ‒, desemboca na concretização de um sonho, tanto mais difícil quanto se quer empresa de indivíduo só, e deficiente, desafiador de homens e de Deus, no esforço derradeiro de transportar as mós, qual anti-Sísifo.
O velho sonho de construir um moinho não visa, somente, alimentar o corpo; busca ‒ talvez, o principal achado ‒ recriar a alegoria da caverna platónica: «Foi além, entrou na caverna da sua existência, entrou no mundo das sombras, no submundo da inconsciência humana. Esteve no mundo do esquecimento.» É mais explícito noutra passagem: «Acordou agitado; sentia-se distante de tudo, longe do mundo dos outros, que sempre o atormentou. A noite não lhe trouxe a calma que procurava. Em boa verdade nada parecia dar-lhe satisfação plena. Durante anos sonhou com o moinho, agora que moinho era uma realidade, sentia-o como se tivesse encontrado o seu desterro, a caverna onde viveria morrendo. Maldição dos insatisfeitos! Ternura dos incompreendidos! Madrugada sem luz! Noite sem regresso!»
Que a satisfação, conquistado o objecto do desejo, vire insatisfação, vai de si, nos heróis e semi-heróis. Estranho é que se transmude em «desterro», como se o degredo africano fosse uma estação inevitável no peregrinar da alma. Há uma condenação superior, já espelhada na sentença de juiz terreno?
Seja como for, essa consciência é a verdadeira realidade, como se ameaçava desde a epígrafe. Negatividade, no prefixo in- e na preposição sem, a par de outras fórmulas? Eterna «dúvida inconsequente», que humedece o último poema? Ou puro desejo de, embora sofridamente, objectivar-se, contra a «verdade» que só os outros dizem possuir?
O gesto vitruviano enfim revertido na horizontal (contra a posição vertical) é um reforço dessa procurada harmonia ‒ reconhecidamente, em falta ‒, que o Renascimento científica e esteticamente alicerçou; o pensamento medieval, contudo, adaptou-
-o à cruz de Cristo, e, agora, humana (ou bicho da terra), num sentido salvífico. Vislumbra-se esta convergência, no cair do pano.
Eis como, de um andamento originariamente rural, localizável, à vista da Serra do Reboredo, se passa à enxovia da dignidade, da amputação familiar, social e pátria, até à morte dos seus e desprezo que lhe votam semelhantes; como um discurso fortemente enraizado, com boa enxertia no léxico regional, se atenua, para recrescer na frase autopsicográfica, em gradual romance-ensaio de propósito alegórico, feição raríssima entre nós.
O incêndio é um incidente, seguido dos trâmites judiciais, que também faltam à literatura nacional: são factos sociais, análogos de sentido, motores narrativos; mais do que um contra todos, perdendo-se quando mais se diz no nome e lugar de nascimento, é um herói psicológico em trânsito de maioridade, até se afastar para fundas terras e magoar no chão «de onde lhe vinha toda a vitalidade». Este inesperado elogio à vida é timbre dos melhores.
Ernesto Rodrigues