sábado, 27 de junho de 2009

ETAPA - 2


Foi uma etapa longa, quente, e culturalmente muito rica. Pamplona, onde chegamos ao lusco-fusco do dia anterior, é a primeira grande capital que se encontra no caminho. Dormimos num albergue municipal, instalado num antigo seminário, e acabamos por assistir à festa de permanência na primeira divisão do OSASSUNA, clube dessa cidade, e demos asas à nossa aficcion toureira, nas afamadas festas dos encierros de San Fermin, contracenando com as corpulentas estátuas dos exemplares taurinos que correm ao longo das ruas no centro da cidade.

À saída acabamos por nos perder, e só encontramos a direcção devida, nos frescos jardins da zona universitária que se prolongam numa bonita zona pedonal, onde apetece apreciar a paisagem em redor sentado nos muitos e apetecíveis bancos existentes. Todo esse corredor que bordeja a cidade foi atravessado sem pressas, como disse, acabando por desembocar na bela ponte de Azella. Depois o caminho começa a subir e só pára no “Alto del Perdon”, onde a lendária “Fuente de Reniega” continua a ser objecto de interesse das imensas máquinas fotográficas, bem como a paisagem distante, tão distante que faz perder o olhar. Diz a lenda, que o diabo disfarçado de caminhante, apareceu a um sedento peregrino e prometeu levá-lo a uma fonte se renegasse a sua fé. O peregrino rejeitou a oferta e foi então que se deu o milagre. Santiago surgiu-lhe, à frente dos seus olhos, vestido de peregrino e conduziu-o a esta fonte onde lhe matou a sede com a sua vieira.
Depois o caminho desce rapidamente por sendas pedregosas, como a vida, e depressa se chega a Uterga, Muruzával e Obanos, onde paramos para retemperar forças e apreciar a beleza arquitectónica da Igreja de S. Juan Baptista e onde soubemos, um pouco encantados, a lenda da Santa Felícia de Aquitânia: diz-se que depois de percorrer o caminho como peregrina, decidiu renunciar à vida de nobreza e ficar a viver neste lugar para auxiliar os pobres. O Seu irmão, Duque Guilherme, quis obrigá-la a regressar, como não o conseguiu matou-a à punhalada. Cheio de remorsos, peregrinou até Santiago como penitência e no regresso decidiu ficar também ele em Obanos.
Continua-se por entre campos de cultivo e aparece outra lenda do caminho, que cresceu à sombra dele, encruzilhada do caminho Aragonês e Francês: Puente la Reina. Conta a lenda que na ponte dos peregrinos existia uma imagem da virgem de El Puy e sempre que a aldeia se engalanava para qualquer evento, aparecia um passarinho para lavar a imagem, molhando as asas no rio e transportando água no bico.
Ficou-me na memória a estreita e bonita rua que desemboca na dita ponte dos peregrinos, bem como o primeiro percalço da viajem, já que, nas proximidades desta vila se partiu o parafuso que fixa o selim ao espigão e, sem forma de conseguir esta importantíssima peça da bicicleta, que me apetece apelidar de máquina de regresso ao passado, tive que continuar viajem até à próxima vila, meia dúzia de quilómetros depois, pedalando sempre em pé, sem me poder sentar. Continua-se sempre em frente debaixo de um sol impiedoso, só amenizado por se saber que se pedala nas pedras de mais uma estrada romana. Atravessam-se vinhedos, a estrada nacional, várias vezes, e a seguir aparece Lorca e a sua bojuda igreja. Depois, depois lembro-me de subir, descer, subir, descer… atravessar pontes, vilas, aldeias com robustas e preciosas Igrejas, de grande dimensão, como se fossem desproporcionadas para o tamanho dos lugarejos.
A meio da tarde, depois de ver amendoeiras oliveiras que foi para mim uma novidade, surge Estella, e surgem dúvidas se devíamos continuar, ou dormir ali, tal era o cansaço e o calor sentido. É uma vila de grande riqueza cultural, abundantes monumentos, testemunhos de um passado florescente. Nela assisti a uma lição curiosa. Fui assistente de uma aula ao vivo, dada por uma professora de 1º ciclo, com a turma sentada na escadaria de uma das Igrejas, extremamente atenta, onde explicava de uma forma muito concreta a reconquista cristã, as marcas existentes desse longínquo tempo histórico naquela terra, além das curiosidades sobre o Caminho de Santiago. Uma aula de história ao vivo, muito interessante. Os bons exemplos podem ser copiados.
Decidimos continuar até “Los Arcos”, onde dormimos nas águas-furtadas de um albergue sui generis, com um ambiente pluricultural. As lições dessa tarde ainda não tinham terminado, ainda tivemos que beber na famosa fonte de vinho,… sim!, não é lenda, existe mesmo a fonte que brota vinho por cortesia das adegas Irache.

BUEN CAMIÑO!

quarta-feira, 24 de junho de 2009

ETAPA - 1


Saímos de S. Jean Pied de Port cerca das 8 horas da manhã, depois de termos dormido num dos muitos albergues existentes na vila, e que, por sinal, nesse dia, segundo a loja dos “Amigos do Caminho”, esgotou a capacidade de camas existentes.
O dia anunciava-se nebuloso, o que podia considerar-se uma bênção, atendendo ao facto dos declives que era necessário vencer. Logo após a saída da “Porta de Espanha”, que corresponde ao fim da rua principal da vila, e o início do próprio caminho, este bifurca, e uma placa avisa para não seguir o da esquerda em caso de mau tempo. Optámos pelo da direita, tendo em consideração o tempo e algum dos receios de difíceis declives que toda a gente referia com muito íngremes. Fiquei sem saber como eram os da esquerda, fiquei sem conhecer a "Passagem de Napoleão", mas uma coisa eu sei, aquele por onde optámos era muito difícil. Veredas estreitas, córregos sombrios mas refrescantes, inclinações de tal forma elevada que durante os períodos de curta paragem, nem dava para descansar correctamente. Um pouco perdidos nos vales e na densidade da vegetação só os sons da terra eram audíveis, só o sussurrar dos ribeiros, o cantar da passarada, só o ramalhar das árvores se misturavam com a respiração ofegante de todos nós. Foi um alívio quando cheguei a Ibañeta e avistei o monumento de homenagem ao bravo Rolando. Daí a Roncesvales que, para mim, era um local a não perder, pelo simbolismo histórico, são cinco minutos, ou menos. Confesso que o idealizava mais como um conceito místico do que propriamente geográfico. Imaginei-a sempre como uma vila com muitos habitantes, mas depressa conclui que Roncesvales se tratava apenas de um marco histórico, onde as construções se resumiam à Igreja e edifícios pertença da Real Colegiada de Nossa Senhora de Roncesvales. Administrativamente pertencente a Burguete/Auriz.
Almoçámos, quer dizer, alguns de nós comeram a merenda sobrante do dia anterior, que as mochilas estavam pesadas e era preciso aliviar, outros optaram por um bocadilho bem aviado de jambom e queso, uma coca-cola que, segundo dizem, ajuda no esforço. Devorei com o olhar as igrejas, os edifícios, os recantos, e abalámos depressa, porque o destino ainda estava longe: Pamplona.
Logo à saída, como que a avisar, uma placa dizia: Santiago de Compostela 790 Km. Ninguém quer desistir, perguntou alguém. A resposta foi unânime, envolta numa gargalhada, que todos sabíamos qual era o seu significado. Seguimos, agora por caminhos gravilhosos debaixo de um sol escaldante, sempre à cata das setas, atravessando pequenos riachos bem como a estrada nacional que se ia cruzando com o caminho milenar.
Nesta tarde foi particularmente difícil chegar ao alto de Erro. No registo das centenas de fotos que fiz ficaram as pontes de Zubiri e Larrasoaña . Sobre a primeira, sei agora, ser chamada da raiva porque, segunda a tradição, os animais que passavam sob os seus arcos ficavam curados dessa doença. Na segunda apelidada de “Los Bandidos” por naquele local os peregrinos sofrerem muitos assaltos.

BUEN CAMIÑO!

domingo, 21 de junho de 2009

ETAPA - 0


Já cá estamos, pensei quando chegamos.
Tal como na vida, o caminho não se descreve, deve ser descoberto por quem o percorre. Essa era a minha posição no início, guardarei para mim aquilo que viver, pensava, mas as sensações foram tantas, as paisagens, os recantos, as Igrejas, as pedras milenares, os enigmas, o gozo de percorrer o caminho das estrelas, o rasto da via láctea, foi tão grande que não podia deixar de escrever algumas passagens. Aqui ficam.

Correu tudo como o planeado. Saímos do Porto pelas 4 horas da manhã chegamos pelas 15 horas a Saint Jean Pied de Port. Trata-se de uma pequena vila no país-basco francês, uma vila fronteiriça, encaixada nas altas montanhas matizadas de verde que constituem os Pirenéus, e que é preciso vencer no primeiro dia de viajem. Hoje sei que esta foi a mais dura das etapas.
As construções são de um basalto róseo, creio que é basalto, que lhe transmite uma aparência diferente do habitual, nomeadamente à sua Igreja, que fica encaixada no casario da principal rua, que corta o rio Nive através de uma pequena mas bela ponte, e é freneticamente povoada de peregrinos, de mochila às costas e bordão na mão, que a percorrem, de alto a baixo, à procura de um albergue que os possa alojar durante a noite, ou em busca de um último artigo que se torna necessário para a longa viajem que se propõem fazer. A Igreja em si é pequena, possui um abside muito simples, sem talha, nele ressaltam 3 figuras bíblicas, e uns resplandecentes vitrais, lá no alto, que representam santos que não consigo identificar, embora um deles diga tratar-se de S. Pedro. Notei uma outra particularidade, as arquivoltas do portal de entrada parecem não terem sido concluídas, ou seja, não acompanham o arco em todo o seu desenvolvimento.
Não inicie a viagem sem visitar a loja dos “Amigos do Caminho de Santiago”, além da simpatia, deram-nos informação que se revelou importante ao longo do caminho. Não é propriamente o Codex Calixtinius, que os tempos são outros (que teve a sua importância e, graças a ele, ainda hoje se percorre o mesmo caminho que os peregrinos da idade média percorreram), mas foi importante porque os perfis do terreno que nos forneceram antecipavam-nos, um pouco, as dificuldade que tínhamos pela frente, bem como da longa lista de albergues existentes ao longo do caminho acabou por nos facilitar na escolha dos locais onde se poderia pernoitar. Além disso, não se pode esquecer que a “Credencial de Peregrino” permite o acesso à rede de albergues.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Da leitura e da escrita

O livro, seja em que tempo for, mesmo na era do virtual, onde o audiovisual assume particular importância, será sempre um factor de desenvolvimento psicológico, e até social, para o ser humano. Ele, o grande acumulador de cultura, há-de ser sempre a fonte do verdadeiro saber e musa inspiradora para outras obras, quer literárias, quer visuais, e até plásticas. Aliás, as grandes obras da sétima arte, que povoam as nossas memórias, têm, quase sempre, origem em grandes obras literárias, onde a palavra se associa em milhentas combinações para criar milhentas imagens, mas que, por mais versátil que o cineasta seja, nunca as há-de conseguir captar na sua totalidade, o filme não será mais que a sua visão da obra, nunca será capaz de captar o entusiasmo e a leitura de um outro qualquer leitor, de um qualquer espaço, de um qualquer tempo. Assim, no meu entender, a palavra escrita, esteja ela num e-book, ou impressa em pasta de celulose, continuará a registar as novas descobertas da ciência, a elencar as listas de compras que é necessário não esquecer no supermercado, a descrever as mais fantásticas viagens siderais, continuará a exaltar consciências e a transportar-nos para outros mundos imaginados, que, muitas vezes, acredito nem serem aqueles que o autor quis descrever, porque as palavras têm mil significados e quem lê também recria.
Diz-se que escrever é ler duas vezes, mas essa simples correspondência matemática de 1 para 2, que esse rifão enuncia, é pequeno para declarar a grandeza da escrita e da leitura. Escrever é muito mais que isso, é deixar que os personagens adquiram vida, é deixá-los percorrer espaços mais ou menos imaginados e, ao fazê-lo, deixar que os vejam, os cheirem e os sintam. Escrever é dar-lhe nome, cara, encher-lhe a alma com sentimentos, paixões, contradições, paradoxos, frustrações e alegrias. Escrever é projectarmo-nos no papel, ultrapassarmo-nos, é ser curioso e corajoso intelectualmente, é ter uma janela que abre em dois sentidos: para nós e para o mundo. Ler é ser verdadeiramente humano, é ser capaz de associar os múltiplos sentidos das palavras, é viajar sentado nas asas da imaginação por sítios mais ou menos conhecidos, é recuar em épocas mais ou menos distantes, é viajar no futuro, é crescer.
Então, se ler é crescer, o postulado atrás enunciado também aqui se aplica. Quem escreve ou lê cresce múltiplas vezes. Cresce porque aprende a conhecer-se e a abrir os olhos para o mundo que o rodeia. Cresce porque aprende a construir-se, a tornar-se homem ou mulher. Desta forma saudável, está a robustecer-se para a vida, está a tomar as vitaminas, o flúor que o hão-de manter saudável e torná-lo-ão cidadão responsável. Quem escreve, sabe que não é na prepotência que se cria, é na humildade do trabalho que tudo nasce. Não tenho artes de adivinho, mas sei que nós somos o reflexo do passado, e porque assim é, iniciativas como esta hão-de dar frutos, acreditem, quem aqui teve a coragem de se dar a conhecer, não mais o esquecerá ao longo da vida. Não mais olvidará que, um dia, teve a audácia de se dar a conhecer sem medos nem receios. Não mais esquecerá que um dia se libertou, quebrou amarras, desbravou a língua, gritou, ou sussurrou palavras aos ouvidos da namorada ou namorado à frente de todos.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Ultreia!


Fiz o “Caminho de Santiago”, mais conhecido por “Caminho Francês”. A ideia já existia na minha mente há muitos anos, mas nunca a tinha concretizado porque nunca tinha encontrado alguém que, tal como eu, estivesse disposto a percorrer de bicicleta 800 km, desde S. Jean-Pied-de-Port a Santiago de Compostela, sem se importar com as dores musculares, as intempéries, os calores, os frios…
Não sabia o que ia encontrar, como é lógico, desconhecia que era percorrido por centenas e centenas de pessoas de todas as nacionalidades, alemães, franceses, americanos, mexicanos, brasileiros, sul-coreanos… não sabia quem eram essas pessoas, quais os impulsos que as levavam a levantar-se cedo, a caminhar debaixo de um sol abrasador e a menosprezar os frios penetrantes da montanha. Depois de o fazer contínuo ignorante, talvez seja a fé a mover montanhas, talvez haja um recolhimento interior, demasiadamente humano, que se encontra quando se caminha sozinho, longe do bulício da vida e que dá forças para continuar, a fazer o percurso do sol, passo após passo, em direcção ao fim, mas que depressa parece transformar-se em princípio.
Por mim, digo apenas que me fascina o misticismo a ele ligado, fascina-me ser capaz de encontrar nos imensos monumentos, nos imensos sinais encontrados ao longo do caminho uma linguagem simbólica, que se perdeu nas brumas do tempo, mas que continua, ali, à espera de ser verdadeiramente encontrada. Fascina-me a ideia de um espiritualismo secreto, que se descobre apenas quando se percorre, quando se tem a noção do conjunto, um caminho capaz de transformar, seja a alma que for. Penso que também me transformou, aliás, como todas as experiências humanas. Nele, em Roncesvales, ouvi a trombeta de socorro de Rolando ecoar ao longo do vale verdejante, compreendi o orgulho e a valentia que o levou a quebrar a sua Durindana ao perceber que estava prestes a morrer. Lá no alto, na Cruz de Ferro, escrito nas pedras que tradicionalmente se colocam a seus pés, e nas lágrimas que vi derramar, fui capaz de perceber a força sobre-humana que os leva a continuarem dia após dia. Em, “El Cebrero”, isolado, cortado por um vento penetrante, envolto em misteriosas nebrinas, uma igreja rústica, mas simultaneamente reconfortante, entrei na mística da lenda que o liga ao Santo Graal. No Monte del Gozo, senti o verdadeiro gozo que é avistar o fim da viajem.

BUEN CAMIÑO!