quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A manif

Nos altifalantes continuavam a nascer incentivos à resistência cantados nos ritmos compassados e lentos das terras alentejanas, também apelidadas de celeiro do país (planície de larga semeadura onde a revolução, em gestação avançada, já exigia a terra a quem a trabalha, morras aos latifundiários e vivas às UCP [Unidades Cooperativas de Produção]): em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade, Grândola... Viva o 25 de Abril... Abaixo a reacção... terra da fraternidade... Viva a Revolução Socialista... O povo é quem mais ordena... abaixo o capitalismo!... dentro de ti, ó cidade... basta de repressão... o povo é quem mais ordena...

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O beijo

Não foi um beijo na boca como agora se faz, que esses sinais de maior intimidade amorosa ou até sexualidade, para ele, já na casa dos entas, educado na mentalidade de outra época, eram coisas para se fazer a coberto da noite, submerso pelos cobertores e sempre nos ditames da moral. Aquele sinal de afecto não passava de um beijo de família, um beijo de boa educação, mas nunca poderá ser um rito de conotação sexual, porque ele, homem temente a Deus, todas as manifestações libidinosas e públicas que incluíssem contacto de mucosas, troca de bafos, e muito menos vasculhar de línguas, como se compreende, era já considerado pecado, um beijo de paz talvez seja esse o significado que melhor lhe cai. É que o beijo é um comportamento humano tão polissémico, a paleta de significados são tantos, desde sinal de traição, sopro de vida, paixão, amor, beija-mão, passando pelo ósculo de homenagem vassalática que convém esclarecer as coisas, só para evitar confusões.

sábado, 25 de outubro de 2008

O silêncio das pedras

Calcorreou as pedras negras da íngreme calçada, que lhe falaram do tempo de meninice, sim porque as pedras dizem coisas, ninguém me convence do contrário, não há silêncio nas pedras, as pedras falam – não com o sentido de coscuvilhar, bem entendido, a sua alta honradez não é digna de tal estreitura – de e para a gente, basta saber escutar, basta esperar pelos momentos mágicos do amanhecer ou entardecer, pela quietude do travesseiro, ou então simplesmente, esperar que os anos nos endureçam, que o camartelo do tempo nos enforme e nos aparentem a elas. Eu ouço murmúrios, queixumes de injustas pisadelas, por vezes ouço gritos de revolta pelo peso que carregam, ouço vitupérios de desprezo pelo cimento, ouço hinos beneditinos de louvor ao trabalho, ouço interrogações de espanto perante subidas catedrais, ouço os muros de Tebas na lira de Anfião, ouço ventilantes penedos a versejar,
ouço odes no cascalhar,
ouço limas polidoras nos calhaus a rolar, ouço gemebundos calceteiros de cócoras a martelar, vejo ascese em quem constrói.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O eucalipto

E o homem, pacientemente, explicou o contrato de vinte anos, a plantação de eucalipto, que é uma planta “nobre” de rápido crescimento, dizia ele, a renda anual, a comparticipação nos lucros da fábrica de pasta de papel. O senhor Fernandinho não hesitou. Vendeu-se mais uma vez. Antes ver floresta que ver as amendoeiras e oliveiras ao deus-dará, abandonadas, sem lhes poder valer. Nem mandou dizer aos filhos, meteu-se-lhe aquela na cabeça e ao fim de oito dias já ele assinava o contrato.
Mas não se pense que foi pêra-doce para o senhor Fernandinho, a quem dava dó ver os possantes catrapilas desenraizar as centenários oliveiras e carregá-las para serem vendidas por essa Europa fora, a alindarem algum jardim de alguém endinheirado. Até os muros de pedra solta foram veniaga. Como é possível?..., perguntam-se alguns. Não estou a falar de pedra, não, estou a falar de muros, muros de pedra solta,
muros que contam história,
peças de património,
molduras da paisagem,
Não! O dinheiro tem mais peso… Qual património, qual memória de povo!… As máquinas precisam de entrar à vontade.
Morreu de pasmo, quando os charruões, capazes de arrancar fraguedos, esventraram sem dó nem piedade o olival da Ferraria.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A formiga

A Trincadeira era uma obreira abdominosa, de rabo vermelhusco e alçado, que é o mesmo que dizer de nariz empinado, filha de uma das melhores famílias de formigas europeias, os Formicídeos, de cujos pergaminhos muito se orgulha e que remontam ao longínquo Cretáceo. No armorial das formigas, “A verdadeira história da família Formicidae”, página 126, lá estava o brasão de família: o escudo esquartelado e, em cada um dos contraquartéis, uma figura de insecto aformigado a representar as suas três fases metamórficas, e, no quarto, a atestar a ligação longínqua, uma vespa de perfil, virada à sinistra, para mostrar bastardia. Disse boas famílias, mas não faltavam descritos maus-exemplos (dizem os humanos que num rebanho há sempre uma ovelha ranhosa, e no mundo dos formicídeos esse aforismo também era verdadeiro): assassinas, escravistas eram desde sempre conhecidas, mas a variedade da Trincadeira há muito que tinha enveredado por outras formas de vida. Durante o Verão abelhavam incessantemente, atestando até abarrotar o armazém comunitário do formigueiro; depois, durante o Inverno, deitavam-se regaladamente, muito quietinhas, numa das câmaras, autênticas casernas, e, quando a fome apertava, dirigiam-se à adega, que ficava nas traseiras, em local bem arejado, e comiam o que havia, normalmente ervas de diferentes paladares, vermídeos estiolados, embora o lambisco de quase todas elas fossem os fungos que por vezes se formavam nos interstícios das pilhas do comestio.
"..."

domingo, 19 de outubro de 2008

A Serra do Pilar

Chegaram os dias curtos, pardacentos e frios na coroa da Serra do Pilar. Nesses dias, até o convento, sempre aprumado, de bivaque rubicundo de quatro águas, enterrado na cabeça até às orelhas, num ar nitidamente paisano, parecia ficar mais triste. As feridas contusas das suas paredes, galardões de outras guerras fratrícidas, pareciam ficar mais visíveis. Nas traseiras, o zimbório redondo da Igreja, de atalaia sobre a parada, fazia lembrar o solidéu carmim do arcipreste Bento. A ponte bipé, mesmo defronte, descarnada e escanchada sobre o rio, reificava aquilo que amava verdadeiramente, e que ficava na outra banda.

sábado, 18 de outubro de 2008

A taberna

O Augusto entrou na taberna da Tia Maria Augusta. No ar pairava um cheiro inebriante a licor de Baco. A luz escasseava. No balcão de madeira, carunchosa, tingida de círculos húmidos e avermelhados, deixava prever que já muito bicho tinha sido morto àquela hora da manhã. Aos seus pés, uma corda de lixo e beatas esmagadas, alongava-se a todo o cumprimento. A tia Maria Augusta de cara queimada e sulcada pelos muitos invernos já vividos, lenço atado aos queixos, dissimulada de preto no canto interior e escuro do balcão, fazia meia, só pelo tino. Encostados ao balcão dois marchantes de gado discutiam de forma acesa o real valor da uma vitela: eu dou treze notas, dizia o do chapéu desabado. É pegar ou largar.

In: As duas faces da moeda

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O colégio

O leitor não julgue que o Colégio, importante como era, tinha uma grande e donairosa fachada, alegre, de azulejos floreados, de frestões amainelados emoldurados em nobre granito, alindados com varandins de ferro forjado, frontão na grande porta de entrada elevada por um bonito patim em cantaria cinzelada, cornijas frisadas, carrancas nas goteiras, e um grande letreiro de néon com o nome inscrito, a denotar as suas origens: COLÉGIO NOSSA SENHORA DE FÁTIMA. Não! Nada disso! O Colégio era um paralelogramo, de dois andares, cuja frontaria principal era a face mais estreita, e não media mais que vinte curtas canchas. Uma porta de duas folhas, centrada no rés-de-chão, quatro janelas no piso superior dispostas duas a duas, a fazer lembrar olhos rasgados, inteligentes, um par de escadas curvadas subiam ao primeiro piso, como se fossem as hastes de um bigode descaído, encontrando-se no primeiro andar, num pequeno varandim, com acesso a uma porta, também ela bífore, que bem podia ser o nariz daquele estranho ser de cútis esbranquiçada.
Os dizeres COLÉGIO NOSSA SENHORA DE FÁTIMA, de furco e meio de altura, escritos na testa, em letra de imprensa maiúscula a todo o cumprimento, a avisar os passantes da sua importância, semelhante a uma gelha permanentemente encrespada, dava-lhe um ar encanecido, sapiente e prazenteiro. Mas nem todos o sentiam assim. Para muitos, e principalmente para o Toino Silvestre, aquela ruga transmitia antes um ar carrancudo, que se adensava com aquelas janelas rasgadas, envidraçadas, em permanente atalaia, como se olhasse de uma forma penetrante, intimidativa e com uma certa sobranceria para com o maralhal e também para com a sua irmã de casta inferior, que ficava defronte. Não vamos ficar pelas meias palavras. Não! Ele e a Escola rivalizavam, embora se suportassem. O Colégio olhava-a sempre com desdém. Ponto. Não era pela sua grandeza ou volumetria, que por aí não tinha hipótese de competir, mas porque era mais velho, mais erudito, e nos seus pensamentos mais íntimos tinha até pretensões a Liceu. No seu ideário, o ser Liceu era atingir os píncaros da pedagogia, era ser grande como o Liceu Aristotélico do grande filósofo grego. E nela denotava-se uma certa inveja, não digo que fosse uma inveja mesquinha, era, se assim se pode chamar, uma inveja benigna, quer dizer, gostava de ser adulta como o era o Colégio.
In: Contos dos montes ermos

A feira da vila

Enfeirar era um dia de festa, era “ir à vila” ao oitavo dia, com carava, se possível, empinocar-se, vestir a jaqueta guardada para ocasiões especiais, e apreçar, muito mais do que mercar, que os dinheiros eram poucos. Levantar cedinho, apanhar a camioneta da carreira, que passava despois das sete, a dos estudantes, matar o bicho no café do Basílio, e depois, sim, descer a Corredoura, passar uma primeira vez, abaixo/acima, a cheirar o ambiente da mercância, que começava a tomar forma, nas labirínticas ruelas já bem desenhadas. Nessa hora da manhã, a grande parte dos feirantes eirava pelo chão ou, então, pela improvisada mesa de contraplacado a pesada veniaga, aliviando os amortecedores das atulhadas carrinhas de caixa fechada, montava o estenderete debaixo da barraca, para dizer bem e depressa, ainda o ganapo que veio ao mundo no último Inverno, sempre ranhoso, fruto das invernosas manhãs, e que tardava em não largar os cueiros, no dizer da mãe, dormia o último sono agitado, embrulhado em surrentos farrapos que almofadavam a caixa de papelão a dizer OMO lava mais branco. Outros, os mais atrasados, de marra em punho, a denotar alguma falta de jeito, martelavam a estaca já esborcinada pelo muito uso, que em cada marretada se enterrava, lentamente, na terra saibrosa, dura, nunca conhecedora de enxada ou charrua. Depois eram as dificuldades do costume ao estender o toldo, mais capaz de proteger do sol que da chuva, sobre o esqueleto de ferro galvanizado. Havia de se levantar sempre uma rabanada de vento a enfuná-la, como se fosse gávea de proa, e lá vinham mais uns vitupérios, também eles intempestivos, ao atar dos amantilhos. Os mais fervorosos, ou talvez os mais sedentos adeptos dos seus direitos, discutiam impetuosamente, a ponto de mandar chamar a guarda, sobre o local competente para prantar a barraca, que quanto mais próximo da entrada melhor, e que o companheiro de mester lhe tinha roubado. Depois, numa segunda passagem, já as nove tinham soado há um bom migalho na bojuda torre da Igreja, e uma segunda vaga de camionetas tinha descarregado os gentios das redondezas na praça, era tempo de ir à procura de uma cara conhecida, parar no meio da ruela a entupir o fluxo da mole informe que fluía rua abaixo, discutir o que cada um viu, ou, então, saber as últimas de algum caso que corria de boca em boca. E quando a ânsia de querer ver se adensava e já se tornava difícil de suster, um parece que pariu pr`ali a galega, dava o mote, e iniciava-se uma nova corrida, que os carrinhos de choque, ao longe, pareciam imitar, ruela fora, ziguezagueando, envolto num vozeio denso, entremeado pelos elogios à mercadoria que surgia de todos os lados, merecedora de um olhar mais atento, uma pausa mais acentuada: “entre, patrão, e venha ver a qualidade do produto...”.
"In: Contos dos montes ermos

A Feira

Nos dias de feira a praça tornava-se ainda menor. Os feirantes eram os de sempre. O Sr Pompílio, o ourives, montava a barraca dentro do adro. Naquele momento pendurava os pingentes reluzentes em mostradores negros, realçando o seu brilho e beleza. Junto ao urinol cilíndrico e fétido, não faltou o sapateiro de pernas amputadas, que além de butes adequadas à lavoura, não descurava outros modelos capazes de satisfazer outros pés mais exigentes. Ao lado da Igreja do Santo-Cristo, e depois do bufarinheiro do costume, ficava a muito apreciada veniaga (atoalhados, cobertores, colchas) da Luísa Tendeira, que anunciava pelo alto-falante que aquela linda toalha alinhada, não custava, nem treze, nem doze, nem onze escudos. E para quem trouxesse uma moeda de dez escudos oferecia um sombreiro, e um par de coturnos. E ainda,... para quem trouxesse a mesma moeda de dez escudos, oferecia uma toalha. E logo o poviléu se ajuntava, para ouvir mais uma vez aquela lenga-lenga, repetida até à exaustão. Também o ti Ferrador se apresentou com as suas canetas: podões, calagouças, alviões, enxadas, forcadas, relhas, e até as apreciadas facas de Palaçoulo, e, como sempre, prantou a sua mercadoria, sobre a mesa granítica, defronte da casa da junta.
"..."
In: As duas faces da moeda

sábado, 11 de outubro de 2008

O comboio

1977. O comboio marcava o tempo, que bem podia ser adjectivado de medievo: as casas escuras e térreas, cobertas a telha-vã, paredes de pedra solta, sem reboco, partilhadas com os animais, os tavolados toscos e sujos varridos a vassoura de giesta, a iluminação de petróleo. Será necessário melhor caracterização? Sim, alguém disse. Agricultura: de subsistência. Ruas: empedradas e lamacentas. Horário de trabalho: de sol a sol. Horológios: o da torre da igreja, que beatificava as horas com “ave-marias”, e o comboio, que as mundanizava. Era depois de o apito das dez (horas de Terça) entoar pelos campos que se matava a fome e aliviava as dobradiças do moirejar. Era depois de passar o do meio-dia, hora de Sexta, que se jantavam mais uns mordos. Era depois do apito das seis da tarde, horas de Véspera, que se largava a rabiça do arado.
– Vamos parar, que já lá vai o comboio – dizia o João Caturra, que, debaixo de um sol escaldante, segava desde os primeiros alvores do dia. E erguia o costado, deitava a mão às cruzes, e ficava a olhar ao longe aquele mostrengo negro como a fuligem que se aproximava lentamente. Às vezes, a seguir ao apito, ouvia-se o toque a rebate que trespassava a canícula, e ao longe surgia uma coluna de fumo negro, que só não engrossava porque todo o poviléu acorria apressadamente, quase em transe.
– É lá para os lados do Rebentão... – e o povo acorria, de ramo de giesta ou pinheiro pegajoso na mão, desatando a bater as lambras, que dificilmente se extinguiam.
– É bater de fora para dentro... – aconselhavam os mais experientes, já conhecedores de tal ciência. E, de facto, quando se batia de cima para baixo, parecia mais um sopro de vida que uma pancada de morte.
Mas, fosse como fosse, o comboio já fazia parte da vida e da paisagem. Aquelas linhas de montes corcovadas e encavalitadas já não seriam as mesmas se várias vezes por dia aquele comboio tardo e sujo não transmontasse a paisagem azulada, ora num sentido, ora noutro. Da chaminé elevavam-se volutas espiraladas de fumo negro, que pairavam por alguns segundos acima das berlindas, delindo-se no ar lentamente ou volatilizando-se se uma rabanada de vento lhes batesse nas carantonhas. Os vagões de mercadorias, de taipais baixos, seguiam ordeiramente na traseira, deixando ver as sacas de adubo ou cimento arrimadas. Dos possantes êmbolos, polidos e refulgentes, que ligavam as rodas, uns fuminhos esbranquiçados esvaíam-se quando o som de ar comprimido se soltava estridentemente. Resfolegava tal como um cavalo, mas mais forte, a fazer doer o ouvido, e a parecer que ia desconjuntar-se num amontoado de ferros. Na estação matava a sede: a torneira mastodôntica, depois de apontada à bocarra superior da caldeira cilíndrica, vomitava um jacto de água que o depósito, pernalta e cinzentão, guardava.
Depois de matar a sede, um apito estridente fendia o silêncio e espaventava a passarada entretida a rebuscar nas amoreiras dos lameiros, que voava em bandos assustadiços e estramontados como se não tivessem destino. Quando o apito era mais prolongado, aparecia sempre alguém a encontrar um significado especial, acabando por chalacear:
– Apita, Abílio!... – O Abílio era o maquinista natural da terra, que assim cumprimentava todos, e de uma só vez.
As berlindas eram bangalós ambulantes. Duas varandas amaneiradas à frente e atrás, com janelas airosas de guilhotina invertida (a abrir, quando desce, e a fechar, quando sobe), e de ponta a ponta. Como nos rebanhos existe sempre uma ovelha preta, que imediatamente se distingue das outras, também o comboio tinha uma carruagem diferente. Nada de verde-tropa e tectos pretos como as outras. Não! Eram riscas brancas e vermelhas, a lembrar uma papoila em campo de trigo. Arredondada e garrida, ostentava ufanamente a palavra CORREIO e gostava de se posicionar logo atrás da máquina, como se sustentasse aspirações a guieira.
Se não era guieira, podia muito bem ser considerada primeira. Era ela que guardava e trazia os ventos, nem sempre auspiciosos, de além-dos-montes. Já trouxe ventos de guerra, ventos de fome e de racionamento; ventos de liberdade trouxe há meia dúzia de anos atrás. Agora, trazia a sua própria extinção. Era o seu suicídio, vingado pela sua própria lentidão, de não ter acompanhado os tempos. Os jornais nessa manhã escreviam ostensivamente: CP FECHA LINHA DO SABOR.
"..."
In: Contos dos montes ermos

A procissão

Não sei se existe alguma procissão que não seja antecedida por missa, mas aquela de que vos quero falar, que é minha e muito minha, desde sempre teve uma a antecedê-la. Nessa missa, de solene tradição, o andor padroeiro também participava, ficava no corredor central desenhado pela bancaria, de olhar pio e fitas estendidas, pedinchando, mesmo defronte ao altar-mor. A populaça, endomingueirada, acorria à igreja, pequena para tanta fé, a ouvir mais uma vez a crónica do santo, sarmoneada lá do alto do púlpito de ferro forjado, de escadas enroscadas à verticalidade de uma das bojudas colunas cilíndricas demarcadoras da nave do templo, por um acólito convidado especialmente para acto tão solene. E depois da educativa prédica hagiográfica, que glorificava sempre o martírio para vencer o mal, personificado por um pobre diabo, um espantalho, um bonifrates que havia de rebentar lá mais para diante, o padre, depois da devida genuflexão sacrária, dirigia-se para o portal de entrada e, do alto da soleira, enxergava a formação da mesma. No mesmo instante, os porta-pendões, de tez churrada pelo sol, a contrastar com a ebúrnea calvície da protecção conferida pelos chapéus de feltro, e que, de opa vermelha vestida, tinham assistido à missa, dirigiam-se aos mesmos, que, encostados à parede lateral ostentando ícones sagrados, pacientemente, esperavam que essas boas-almas os ostentassem. Os pegadores do andor elevavam a charola sempre de forma equilibrada, entrecortada entre palavras bichanadas, que em lugar de culto não é socialmente assertivo falar alto; “cuidado!”, “vá, agora!”, “devagar, devagar!”, não fosse o santo tombar, profanar a divindade, pecado capaz de levar à excomunhão, ou, sabe-se lá, à ordenação de algum auto-de-fé, que por bem menos, noutros tempos, bem entendido, foram sentenciados com o queimadeiro. Mas não se corria esse risco, que eu vi, com estes que a terra há-de comer, que o santo era de pau maciço – de pau maciço! –, o encaixe fora propositadamente talhado por mãos de engenhoso carpinteiro e o espigão de roscas, que também nada tinha de divino, perfurava a peanha e só por obra de um grande e humano mafarrico se soltaria.
"..."
In: Contos dos montes ermos

A banda

“Só o bombo é meia banda”. Era o comentário da ufana e musicómana populaça, ainda embasbacada pelos sopros transformados em dós sustenidos e rés bemóis e outros acordes nem sempre sincrónicos, mas sempre melodiosos para duros ouvidos (temporizados por colcheias e semicolcheias), durante a primeira arruada, na madrugada de um domingo estival, uma raitada no linguarejar de alguns, cumprida num grito de renascimento e agradecimento ao povo, ao longo da empedrada rua da praça, embocadura da casa de ensaios e termo na estrada, onde a carreira do Santos, estacionada, aguardava a ilustre e renascida banda, antes de partir em direcção ao povoado vizinho, que também se vangloriava com uma, mas de tal modo mal vista que poucos se atreviam a contratá-la. Só por desconhecimento, e quando isso acontecia, havia sempre mais uma estória risível que depressa se transformava em mais uma chalaça. Vê lá se fazes como o outro que... E quando os últimos acordes se extinguiram ficou o sabor a pouco, e as infinitas comparanças continuavam: por aqui não há quem a bata, nem a da Lousa, diziam-no com altanaria saudável, a roçar o desdém e num tom brejeiro, ao referirem-se às outras que não faltavam por aqueles povos das redondezas, mas que, no seu dizer, não lhe eram comparáveis. Só a trabalheira que deu para a desenterrar, e depois as arrelias para a içar, aí é que foram elas, discussões e mais discussões não faltaram, que por vezes degeneravam em ralhos e ralhetes, que extravasavam a casa do povo. Habituados a nada receber, nem tentearam outras hipóteses de financiamento que não fosse o peditório; aliás, a quotização sempre foi a maneira de resolver os problemas: o povo juntou-se para comprar o relógio da igreja, o povo juntou-se para canalizar a água, o povo juntou-se para fazer a festa... sempre foi assim.
"..."
In: Contos dos montes ermos

A festa

"..."
A festa era o ponto alto das “vacances”. A festa começava uns dias antes, no engalanar das ruas, na feitura dos coretos para as duas bandas, que haviam de se digladiar, no domingo pela noite dentro, a encerrar as grandes festividades anuais, e criar apetite para o ano seguinte. O coreto havia de ser robusto, bem enraizado no chão, não fosse acontecer como daquela vez que o Ti Madanelo, já farto de esperar pelos acordes da banda, repetia já desaustinado: “Toque música que o coreto não cai. “...“Toque música que o coreto não cai. “, e zás, o coreto estatelou-se mesmo ao chão. De roldão, assim, sem mais nem menos. Foi uma autêntica cambulhada de instrumentos, de cabeças, de pés e de tábuas. Nada foi como dantes.
O vinho também havia de ter uma palavra a dizer, e havia de rachar umas cabeças, provavelmente de forasteiros da aldeia vizinha, que nem sempre eram bem vindos. No sábado o altofalante havia de zurrar, bem alto, durante todo o dia, num convite permanente ao arraial. Á noite os pretendentes das moças casadoiras, haviam de deixar as economias no bazar, na arrematação das prendas, que tinha que ser entremeada com sonoridades da banda, não se fosse perder a animação.
Pela meia-noite o pirotécnico havia de ser chamado uma dezena de vezes ao som do altofalante:
- Atenção ao senhor Pirotécnico... Atenção ao senhor Pirotécnico. E ninguém enxergava o pirotécnico. E batia a meia noite na torre da igreja, e nada, e batia a meia-noite e um quarto, e nada, finalmente e depois daquele impaciente espera, e já o relógio se preparava para contar mais um quarto, e o mordomo principal esquecendo-se que o microfone estava ligado, desabafava: “Lá vem o fogueteiro, caralho!”
No domingo a procissão, havia de percorrer as ruas da aldeia, com a banda atrás do andor de orago, sempre de passo afinado pela pandeireta, e que se calava quando o padre inicia mais uma ladainha. O poviléu estendia as colchas nas varandas, e seguia atrás mostrando vaidades e nem sempre contrito, como impunha o acto religioso. Como do outra vez que foi um “fum-fum” do principio ao fim, só porque o ti Zé da Chica, coitado, já tocado pelo vinho, se encafuou dentro do chafariz, e, quando o puxavam, ficaram com o casaco na mão e ele caiu novamente. Até o padre perdeu a compostura.

Nos dias seguintes abalavam, pesarosos e já a fazer projectos para o ano seguinte.
- Inda um ano, se Deus quiser, hei-de eu sozinho fazer a festa...

IN: As duas faces da moeda

O emigrante

No verão escaldante, quando o calor aperta, os corpos se dilatam e pedem arrefecimento aquático, era quando o Manel da Piedade atravessava Espanha, e se vinha banhar de tronco ao léu, na construção das paredes daquela que seria a VIVENDA PIEDADE, prova do seu sucesso. Havia de a pintar de amarelo torrado, berrante, descaracterizado, a ver-se ao longe, mas invisível aos olhos municipais. Para esses, e para o país em geral, só via a cor dos francos, produto de uma verdadeira indústria exportativa, que ajudaria a sustentar a guerra: mão-de-obra boa e barata.
Nos primeiros anos veio de comboio. Depois, à medida que os tostões íam crescendo no banco, o Manel também se aburguesou. Também comprou um carro. Um Renault 5. Durante o mês de “vacances”, nem um quilómetro fazia. Um quilómetro é uma maneira de dizer, “um” sempre fazia, ía à vila tratar da licença para construir a casa, aproveitando o dia de feira, espreitando os jogadores de vermelhinha, ía pedir mais cimento ou areão, quando aquele se acabava, enfim, aproveitava a rapidez da máquina. Ao quinto ano de “vacances”, e já a “maison” estava concluída, então aí, aventurou-se até Bragança.
Fê-la com dois andares. No rés-de-chão, deixou-a preparada para abrir um café, que sería a sua reforma. Já tinha pensado no nome, inclusivamente. Havia de mandar fazer um letreiro brilhante, que acenderia com o pôr do sol, a dizer: CAFÉ EMIGRANTE. Não! L`ETOILE. Gostava mais daquela sonoridade, encontrava ali um toque de mistério e grandeza que lhe agradava. Inconscientemente, digo eu, havia uma certa repulsa pela língua, e, consequentemente pela terra mãe, que considerava madrasta.
Fê-la por etapas. Ganhava durante um ano, e aplicava-o durante o estio, em cimento, tijolos e azulejos.
Quem passava olhava apalermado:
- Para que é que ele quer uma casa tão grande? Isto parece um palácio.
E o Manel, ufano por dentro, disfarçava com uma certa humildade, que lhe ficava bem:
- Oh, nom -a escapar-se-lhe a língua para os galicismos - c`est normal, aah!
A mulher fazia a “ménage” na casa dos seus patrões. O leitor não pense que ao empregar estrangeirismos, pretendo ridicularizar o personagem, não!, nada disso, era assim mesmo que o Manel dizia. Não sei muito bem aquilo que ele pretendia demonstrar, provavelmente, sería um pouco de sobranceria, quereria simplesmente demonstrar o domínio da língua, ou sería mesmo a habituação anual à língua de Vitor Hugo. A mim, não se me vai da malha, era granito róseo, escodado à força. Seja como fôr, dizia eu que a mulher fazia limpeza em casa dos patrões. Contava-se em surdina, que quando o Manel a apresentou aos patrões, este, a cumprimentou com três beijos, e ela que se sentiu ultrajada, espetou-lhe dois tabefes bem assentes:
- Ah, seu desavergonhado... Disse sentindo-se desrespeitada com aquele cumprimento.
- Oh, mulher tu não vês que aqui é assim... tu que foste fazer?
O senhor Dupont ria-se. O Manel, atrapalhado, à procura das palavras, lá pediu desculpa.
Aparecia vestida com uns vestidos talhados de godés, acintados e rodados, muito ramalhudos e a bater nos jarretes. Largou o lenço, pôs meias de vidro. Cabelos enriçados, espaventosos, a fazer volume, com grandes poupas. Era um “escândalo”, toda a gente comentava:
- Que tecido é esse, do teu vestido, Clorinda? Perguntava a Maria do Abel, com um ar de malícia.
- Eu sei lá, parece-me que é cambraia, mas nunca se sabe, lá... há outras coisas que aqui não há.
- É bem bonito, sim senhor! Concluía com ironia.
- Foi bem caro, comprei-o num grande “marché”. Dizia enquanto agarrava com a mão direita uma das pregas, como que a provar a qualidade do tecido.
- Um quê?...


"..."

In: As duas faces da moeda

O sóto

"..."

O sóto estava exactamente na mesma: o balcão transversal, de madeira puída e gretada pelo uso, a fazer a divisão entre zona pública e privada, continuava imune a mudanças. Até os “ferragachos” expostos, na pequena vitrine meã, eram os mesmos, estavam era mais ferrugentos. A balança esmaltada de dois pratos, Avery, tinha simplesmente mais umas efélides das topetadas. As tulhas do sal, do arroz e do açúcar, que eram também cama do gato, continuavam na parede do fundo. A mesa rectangular, centrada e perpendicular ao balcão, continuava a ser poiso dos rolos e peças de tecidos. Os armários das paredes laterais davam guarida, desde sempre, a caixas e caixinhas sacos e saquinhos que só ele sabia o seu conteúdo. Acantoados na área reservada ao público viam-se relhas de charrua, duas caixas de pregos: uma galeota e outra meia-galeota (os de caibrar ficavam lá dentro, debaixo da mesa dos tecidos, junto da caixa da soda cáustica e da creolina), cestos de polvo sêco, caixotes de bacalhau, vassouras. O tecto, que era também soalho, assente sobre vigas de castanho, era forrado com artigos de menos procura: foles de enxofrar, pulverizadores hipólito, formas dos folares, braseiras,... pendurados em camarões semelhavam uma latada depois de desfolhada a exibir os cachos de uvas.
-Deixe-me ver aquela forma, se faz favor! E logo ele a arpoava com destreza, com ajuda de um extensor de braço.
A única legenda visível em todo aquele espaço era uma placa de fundo azul escuro e letras em branco: VENDAS A DINHEIRO. Para quem entrasse, e não conhecesse, ficava com a sensação de ser um amontoado de produtos, e que Sr Urbano, devia perder horas à procura das porcas, dos parafusos, ou fosse o que fosse... Enganam-se todas aquelas caixas estavam devidamente catalogadas na sua mente. Toda a gente preferia aquele sóto. Raramente se ouvia: “disso não tenho” ou “deixei acabar” ou então mais de forma mais velada: “o caixeiro-viajante não apareceu”.

"..."

In: As duas faces da moeda.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Zé Manco

Vinte e quatro de Dezembro de 1959. Os dias são curtos. As pedras da rua da fonte-do-prado permanecem húmidas dia e noite, há já vários dias. A manhã acordou fria e envolta num nevoeiro espesso e mijão, a impedir que alguém fosse enxergado a uma meia dúzia de canchas. O sincelo, que mais parecia neve, vergava as duas ameixoeiras cagunças do quintal, que dobradas sobre a canelha, a assombravam como abantesmas. Nos beirais as estalactites de palmo e meio; pinguéis, como lhe chamavam, eram garrochas apontadas à terra, e desenxabidos gelados fora de época, mas que no estio não havia.
- Anda burra! Dizia o Zé Manco, ençamarrado e de boné enfiado na cabeça, de abas velosas apertadas à queixada, a proteger as orelhas do rexio cortante, puxava o rabeiro da jumenta, bamboleante, carregada de lonas.
- Isto é que é madrugar, ó ti Zé! Dizia o Augusto do Cabeço em jeito de cumprimento, como que a dizer: “Deus nos dê os bons-dias”.
- Bons-dias! Tem que ser Augusto há que fazer pela vida.
- Então para onde vai hoje? Perguntou o Augusto, esfregando as mãos.
- Vou adrede a mondego, apanhar um rabo de azeitona que lá deixei ontem.
- E vai sozinho?
- Não, a minha Júlia e o meu Albino já vão lá pr`a frente. E tu, já apanhaste a tua?
- Não, ainda tenho a da gricha. Tenha cuidado, com este dia, olhe que ainda se tolhem, retorquiu em jeito de despedida o Augusto.
- Isto ainda vai levantar, predisse o Ti Zé Manco, com a certeza de um conhecimento profundo, que lhe advém do estudo das estrelas e dos ventos desde à muitos anos.
O Augusto circunvagou o olhar, esmando o tempo, como fazia todas as madrugadas, procurando sinais disso mesmo.

"..."

As duas faces da moeda

Um rei sem reino

No reino dos baralhos de cartas, o Rei de Copas era o mais infeliz. Os outros, o rei de paus, o de ouros e o de espadas, viviam satisfeitos, pintados no baralho de cartas do senhor Agostinho, que era homem de poucos jogos. Quando algum dos seus netos os prensava entre o indicador e polegar, e no fervor do jogo os batia com força na mesa da sala, para eles, os reis de paus, de ouros e de espadas, esse era sempre o seu momento de glória. Ah! Se os batiam com tanta força, é porque tinham grande poderio,
Mas o rei de copas não sentia isso, vá-se lá saber porquê! Ele achava que um rei só teria dignidade e poder se possuísse um reino, um pedaço de terra onde lhe obedecessem. Foi este o primeiro pensamento que teve no momento da coroação, ou melhor, no momento em que o pintor espanhol lhe desenhou a coroa no cocuruto da cabeça.
Num dia de Primavera, no tempo em que a terra se renova e floresce, cobrindo-se com um manto matizado de verde, o Rei de Copas, aproveitando ser o primeiro do baralho, descolou-se com muito jeitinho da carta de jogar, não fosse ficar colado algum pedaço ao rectângulo de papel, e, pé ante pé, fugiu sem que ninguém o visse.
Aquela vestimenta que lhe desenharam, própria de rei, não era muito adequada para quem caminha, mas a ele, que estava decidido a encontrar o seu reino, nada o impediria.
Mal o mui nobre Rei de Copas saiu da casa, como que por magia, encontrou o Peter Pan.
– Peter Pan, Peter Pan! – chamou o Rei de Copas, ao mesmo tempo que acenava com a mão para lhe chamar a atenção. O Peter Pan, absorvido, nem o ouvia.
– Peter Pan, Peter Pan! – insistiu.

"..."

domingo, 5 de outubro de 2008

O desmancho


Há gente que muito sofre neste mundo, era assim que o ti Francisco gostava de contar a vida da Arminda. É o destino – continuava ele, num semblante pensativo, para logo de seguida corrigir –, o destino é a gente que o faz. Poucos foram os momentos de descanso daquela alma. E fazia uma pausa, como que a marcar bem o término do intróito.
Quando o Alberto se finou, só chorou externamente. Manhosa como a raposa, fez-lhe o pranto como deve ser, e foi de tal forma convincente que ninguém se apercebeu do contentamento que lhe ia lá dentro. Chorou, gritou, só faltou arrebunhar-se, e quase desmaiou, quer dizer, deu-lhe o chilique tão bem dado, ao ouvir aproximar-se o incessante toque da campainha do préstito fúnebre, enquadrado em fundo pelas rezas do padre, que ninguém diria o que lhe ia no pego da alma. Ai!, Manel da minha alma, que me deixas sozinha neste mundo... e, se não fosse a mãe a ampará-la, estatelava-se mesmo no chão. Quase se convenceu a si própria. Mas não vale a pena falar de coisas que já lá vão; porém, para melhor se entender, falta ainda dizer que ficou descansada, e era mesmo esse o pensamento central que lhe ia na cabeça; “Deus te conserve lá muitos anos sem mim”. Não é por nada, mas ela sofreu muito nas mãos daquele canjirão, que era um dos muitos nomes que ela fazia questão de lhe chamar, e um dos mais suaves. Nunca lhe pôs os chavelhos, mas houve momentos em que esteve bastante hesitante. Quando via o António Bexiga, de Porrais de Baixo, a aldeia vizinha, que foi o homem dos seus sonhos, era um desses momentos. Catrapiscou-lhe os olhos, noutros tempos, ainda ela era moçoila, e foi ele que a desonrou, no meio dos trigos, pelo menos da fama não se livrava. O Alberto nunca teve para com ela uma palavra de conforto ou de carinho, era um bruto. A esta distância no tempo, nem sabe como se deixou embeiçar por ele; a gente, quando é nova, não sabe o que quer, era a forma que ela tinha de justificar a sua cruz, quando se falava dele. Nos negócios da carne era a mesma coisa. Chegava-se a ela, para logo no momento seguinte, sem forças, dar as coisas por terminadas, e, depois, ninguém o aturava, como se todo mundo tivesse culpa, ficava furioso, parecia um touro, e desatava a chamar-lhe os nomes todos, de puta para cima, era tudo o que lhe vinha à cabeça. Ela, coitada, ficava no seu canto da cama, sem se mexer, à espera que a revoada de impropérios passasse. Ultimamente, já não lhe tinha tanto medo, se calhar porque ele também já não podia com um gato pelo rabo. Ia-se para a cama da filha, a Madalena, e ele lá ficava a curtir a bebedeira. Chegou mesmo a deixá-lo dias a fio sem lhe fazer o caldo, e sem lhe lavar a camisa. Agarrava na filha e ia para a casa da mãe, que, honra lhe seja feita, desde sempre a aconselhou a deixá-lo; Aldemenos, não cometas o erro que eu cometi, ele que se dane, não estragues a tua vida, era o conselho da mãe, mas ela parecia nem dar a importância devida.
"..."
Contos dos montes ermos.

O velho

O velho, corcovado, arrimado à bengala de freixo, de manípulo talhado, nas tardes de soalheira, pela faquinha de palaçoulo, com remate de inspiração canídea, a fazer alembrar adornos de castão, vinha procurar companhia. À soleira da porta, olhou os dois poiais, onde costumava sentar-se: ainda não havia ninguém em nenhum deles. O da tia Rabiça, um casqueiro de pinho assente nas extremidades, sobre duas pedras de cantaria, era mais passadouro e sempre se davam duas de conversa, mas o outro, o do cantinho do palheiro, era mais abrigado, e nesta época, ao fim da tarde, era sempre visitado por uns raios de sol setembristas, amarelentos, já pouco quentes, mas que sempre lhe transmitiam uma migalha do fulgor que já não tinha. Optou por esse. Os movimentos do andamento eram ancilosos, lentos, como se os pés pesassem uma arroba. As fivelas das botas de atanado, que não conseguia apertar, e que não viam um pingo de sebo há muitos meses, arrastavam-se, e os pés chocalhavam dentro delas. As calças de burel, já gastas, esfiapadas na bainha e remendadas nos joelhos, pendiam-lhe nos quadris.
A samarra, de gola de raposa sebenta pelo uso, capote para o Inverno, vinha assente sobre os ombros. Numa das chumaceiras, na da direita, alvejava um rasgão na parte superior da cava. Por vezes, sentia-a escorregar pelas costas, e, então, dava-lhe um pequeno safanão com o ombro direito, até voltar à sua posição inicial. O colete cinzento sobre a camisa sem colarinho, refegada e suja, cingia-lhe o descarnado pescoço, como se fosse um cabeção, e desenhava-lhe um bico no peito. Nas bocas dos bolsilhos do colete uma mancha de sarro brilhava.
Sentou-se. Tirou do bolso das calças um codorno de pão que rilhava com as duas longas e persistentes arnelas.

"..."

Contos dos montes ermos