Há gente que muito sofre neste mundo, era assim que o ti Francisco gostava de contar a vida da Arminda. É o destino – continuava ele, num semblante pensativo, para logo de seguida corrigir –, o destino é a gente que o faz. Poucos foram os momentos de descanso daquela alma. E fazia uma pausa, como que a marcar bem o término do intróito.
Quando o Alberto se finou, só chorou externamente. Manhosa como a raposa, fez-lhe o pranto como deve ser, e foi de tal forma convincente que ninguém se apercebeu do contentamento que lhe ia lá dentro. Chorou, gritou, só faltou arrebunhar-se, e quase desmaiou, quer dizer, deu-lhe o chilique tão bem dado, ao ouvir aproximar-se o incessante toque da campainha do préstito fúnebre, enquadrado em fundo pelas rezas do padre, que ninguém diria o que lhe ia no pego da alma. Ai!, Manel da minha alma, que me deixas sozinha neste mundo... e, se não fosse a mãe a ampará-la, estatelava-se mesmo no chão. Quase se convenceu a si própria. Mas não vale a pena falar de coisas que já lá vão; porém, para melhor se entender, falta ainda dizer que ficou descansada, e era mesmo esse o pensamento central que lhe ia na cabeça; “Deus te conserve lá muitos anos sem mim”. Não é por nada, mas ela sofreu muito nas mãos daquele canjirão, que era um dos muitos nomes que ela fazia questão de lhe chamar, e um dos mais suaves. Nunca lhe pôs os chavelhos, mas houve momentos em que esteve bastante hesitante. Quando via o António Bexiga, de Porrais de Baixo, a aldeia vizinha, que foi o homem dos seus sonhos, era um desses momentos. Catrapiscou-lhe os olhos, noutros tempos, ainda ela era moçoila, e foi ele que a desonrou, no meio dos trigos, pelo menos da fama não se livrava. O Alberto nunca teve para com ela uma palavra de conforto ou de carinho, era um bruto. A esta distância no tempo, nem sabe como se deixou embeiçar por ele; a gente, quando é nova, não sabe o que quer, era a forma que ela tinha de justificar a sua cruz, quando se falava dele. Nos negócios da carne era a mesma coisa. Chegava-se a ela, para logo no momento seguinte, sem forças, dar as coisas por terminadas, e, depois, ninguém o aturava, como se todo mundo tivesse culpa, ficava furioso, parecia um touro, e desatava a chamar-lhe os nomes todos, de puta para cima, era tudo o que lhe vinha à cabeça. Ela, coitada, ficava no seu canto da cama, sem se mexer, à espera que a revoada de impropérios passasse. Ultimamente, já não lhe tinha tanto medo, se calhar porque ele também já não podia com um gato pelo rabo. Ia-se para a cama da filha, a Madalena, e ele lá ficava a curtir a bebedeira. Chegou mesmo a deixá-lo dias a fio sem lhe fazer o caldo, e sem lhe lavar a camisa. Agarrava na filha e ia para a casa da mãe, que, honra lhe seja feita, desde sempre a aconselhou a deixá-lo; Aldemenos, não cometas o erro que eu cometi, ele que se dane, não estragues a tua vida, era o conselho da mãe, mas ela parecia nem dar a importância devida.
"..."
Contos dos montes ermos.
Sem comentários:
Enviar um comentário