quarta-feira, 29 de julho de 2009

ETAPA - 8 ( Parte 1)


A etapa adivinhava-se maravilhosa, metafísica, mas simultaneamente dura. O dia nascia cinzento, as roupas ainda molhadas da chuva do dia anterior, arrepiava-nos e criava a sensação, nada agradável, de frio, que se misturava com a impaciência de finalmente subir ao “El Cebreiro”. Com a música sibilina de Wagner na cabeça e o misticismo de Parsifal , arrancámos, depois de encontrar a primeira vieira indicativa da direcção: Vilafranca del Bierzo, importante povoação também ela com profundas tradições jacobeias. Hoje, transcorrido um mês, estou com a sensação de que nem gozei a beleza desta vila, nem as primeiras paisagens galegas intensamente verdes do fértil vale do Bierzo, tal era a ânsia de querer subir depressa a 1300 m de altitude. De qualquer forma, afirmo: pela grandeza dos palácios e das casas senhoriais que vi, com estes que a terra há-de comer, terá tido um grande poder económico.
O albergue municipal de Cacabelos é especial. Não por se tratar de um autêntico hotel de cinco estrelas, verdadeiro peregrino aceita o que lhe dão, é especial porque se trata de um renque de pequenos quartos construídos em madeira, como se fossem berlindas de um comboio, dispostas em redor do adro de uma das Igrejas da vila. Cada um dos cubículos dispões de duas camas e apesar de o isolamento auditivo não ser nenhum, dava alguma privacidade. O pequeno-almoço também foi especial. Era domingo, todas as lojas estavam fechadas, tínhamos em nossa posse leite e cereais, que tivemos que comer sem colher, já que o supermercado visitado à chegada, ou seja, na tarde anterior, não tinha tais artefactos.
À saída de Vilafranca del Bierzo, depois de atravessar a ponte sobre o rio, continua-se a direito, segue-se pela antiga estrada Nacional VI, está correcto, também achei estranho, a designação é em numeração romana, e esta é uma importante informação, é que nesse troço o caminho estava mal assinalado, ou então a nossa capacidade de observação e discernimento já estava alterada e levou a que nos perdêssemos. Depois o caminho segue, plano, sobranceiro ao rio Valcarce. Grande parte desse troço é feito sobre alcatrão mas protegido do movimento intenso dos veículos, que cruzam a estrada, por pesados “rails” de cimento. Ao longo desses vinte e tais quilómetros vá saboreando as casas xistosas de Pereje e Trabadelo, a caixilharia das portas e janelas de um azulão que lhe fica bem e fere a vista de Ambasmesa, La Portela e Vega de Valcarce, o delicioso ferro-forjado das varandas onde pingam cuidadas sardinheiras em Ruítelan e Las Herrerias, e esta última aldeia é o sinal de que vai entrar nas fortes subidas de O Cebreiro. Nesse ponto faltam apenas 9 quilómetros, mas a dureza é tanta que mais parecem 29. Descanse um pouco em “La Faba”, espraie o olhar pelas linhas de montes que se sucedem, se as névoas o permitirem, senão, finja estar numa outra época e deixe-se levar pelas asas da imaginação, sinta o silêncio da terra, o ladrar distante de um cão, os irados mas meigos vocábulos bosquímanos de um pastor que se misturam com o chocalhar do gado, acorde, está em altitude elevada, o tempo pode mudar repentinamente, até politicamente,
siga devagar em direcção a Laguna de Castilha, a inclinação do caminho atenua-se, escute o bater do coração e vá gozando a beleza do lendário Monte Salvat.
O Cebreiro, fruto das duras condições climatéricas, foi um dos primeiros locais a acolher peregrinos. É igualmente célebre pelo milagre eucarístico. Diz a lenda que o pão e vinho se transformaram em carne e sangue quando um monge, descrente, repreendeu um camponês que subia até ali, no meio de um temporal medonho, para assistir à Eucaristia. Desde então, em 8 de Setembro, milhares de peregrinos reúnem-se no local par celebrar o milagre.
Tem origem pré-romana, celta, diz a história, o peso do tempo sente-se, de imediato, logo que se vence a última gelha do terreno. É uma povoação de pedra escura, xisto, cabanas redondas, colmadas, ruelas estreitas, de calçadas de largas lajes: um maravilhoso e misterioso lugarejo perdido no meio da serra. Não fora o frio, bem como a chuva que vinha em rabanadas intensas, além da pouca roupa que tinha, ficava ali durante toda a tarde a percorrer os múltiplos recantos das ruelas.

BUEN CAMIÑO!

sexta-feira, 24 de julho de 2009

ETAPA - 7


Esta era uma das etapas que, desde início, ansiava percorrer. Talvez não fosse só esta, talvez possa dizer o mesmo em relação à primeira, aquela em que chegamos a Roncesvalles, à penúltima por desejar alcançar o Cebreiro, e à antepenúltima, ou seja, esta, porque iria passar na “Cruz de Ferro”, local mítico para os peregrinos, onde é tradição deixar uma pedra que se transporta na mochila desde casa, e que também cumpri. Sinceramente, não sei qual o significado de tal tradição embora possa imaginar, talvez seja melhor assim, cada um pode dar-lhe o significado que entender.
Lá, no alto, no ermo da “Cruz de Ferro”, protegidos de uma chuva intensa pelos largos beirais da pequena capela que lhe fica sobranceira, com a vista de uma pequena cruz de ferro sobre um céu cinzento e carregado de nuvens, fixa no cimo de um poste, erguido sobre um monte de pedras, planeámos chegar a Vilafranca del Bierzo, que não conseguimos alcançar por minha causa. As forças já eram poucas, claudiquei, acabámos aquém da meta estabelecida, mais uma vez. Dormimos no curioso albergue municipal, em Cacabelos, 10 Km antes.
No típico albergue onde passámos a noite, refiro-me ao de Hospital de Órbigo, apesar de pequeno era acolhedor, não faltavam óleos dependurados nas paredes alusivos a “D. Mas de Quiñones”, esculturas, referências de toda a espécie ao caminho e a tudo o que o envolve. Esse ambiente, a simpatia das pessoas, e não me canso de o dizer, acabaram por aliviar a carga dos quilómetros que todos os dias se iam acumulando nos músculos doridos.
O caminho logo à saída da aldeia surge com duas possibilidades, optámos pelo da esquerda, que segue paralelo ao traçado da N-120. O primeiro vislumbre do dia é Astorga, vista do alto, no cruzeiro de S. Toribio que parece ter um projéctil no topo e onde, segundo consta, o bispo da mesma cidade, abatido e injuriado, sacudiu o pó das sandálias ao abandonar a diocese. Gesto bonito, este, mais uma vez a minha ignorância se manifesta, não sei o que significa: exorcizar fantasmas, afastar pensamentos, isentar-se de responsabilidades, indiferença por aqueles a quem dedicámos atenção e não nos ouviram, ou será antes um acto de perdoar, de caminhar, de continuar a andar sacudindo, simplesmente, de quando em vez, o pó das sandálias que nos macera os pés, como que a dizer: eu tenho razão, há que dar tempo ao tempo, continua a caminhar, deixa as árvores frutificar, deixa os rios correr.
Nela, em Astorga, capital da Maragatería, entronca a “Caminho da Prata. Asturica Augusta é também um poço de história e cultura. Apesar da sua riqueza cultural, não ficámos muito tempo. Passeámos um pouco nas suas praças, provámos a beleza exterior da Catedral de Santa Maria, olhámos as ruas da antiga judiaria, saboreamos um café com lette e um bolo tradicional, que não fixei o nome, e fiquei com vontade de voltar para provar o apaladado maragato que, por aquilo que percebi, será algo parecido como um cozido à portuguesa, perdoem-me se estiver enganado.
Deixámos Astorga e depois da ermida de Ecce Homo, o caminho mete por montes e vales, e as abandonadas aldeias de Santa Catalina, Somoza e El Ganso, sucedem-se, até chegar a Rabanal del Caminho, que foi paragem obrigatória para os peregrinos se recomporem antes de entrar no Monte Irago, sempre infestado de lobos de todas as espécies, mas que para nós é recordação de mais uma paragem para retemperar foças na doida Méson Cowboy.
De facto, o enigma do palmípede ganso, que para os egípcios podia ser a alma dos faraós, para os celtas mensageiro do outro mundo, mantém-se ao longo do caminho. O caminho do ganso parece, efectivamente, confundir-se com o caminho das estrelas. Os Montes de Oca, que encontrámos no quarto dia, o Rio Oja, que primitivamente era igualmente Oca e se transformou em Rioja, Paso de Oca,… El Ganso, que agora ficou para trás e recordo como uma pequena aldeia isolada de casas colmadas, e onde se crê que o apóstolo Santiago celebrou missa, todos esse nomes parecem fazer parte do misterioso puzzle que desafia os efeitos corrosivos do tempo, e se mistura, mais uma vez, o pagão e o cristão.
Voltaram as paisagens agrestes, voltaram os bonitos e ondulantes Montes de Leão, mas que criam maiores dificuldades. A maior do dia, como já referi, era a dita “Cruz de Ferro” que se ergue sóbria a 1500 metros de altitude. Confesso que até nem foi a mais cansativa, apesar de ser longa, os aclives são pouco acentuados. Sobe-se, sobe-se, sobe-se … passa-se Foncebadón, mais uma bonita aldeia de casas celtas, redondas e colmadas, envolta numa ampla paisagem verde, pintalgada de amarelo intenso pelas vistosas maias, toma-se um café solo na Taberna de Gaia, pedala-se durante mais vinte minutos, mete-se pela estrada da esquerda, aquela que sobe mais e chega-se ao topo. Depois é sempre a descer, até Molinaseca, onde, paradoxalmente, chegámos completamente molhados. A meio das vertiginosas descidas, com cerca de 17 Km, a chuva intensifica-se, fustiga-nos a face e abriga-nos a parar num maravilhoso restaurante, provavelmente único, numa das pitorescas aldeias da serra, El Acebo, onde abandonámos os bocadillos e nos deliciámos com uma maravilhosa sopa de truta e outros petiscos quentes. Três da tarde. O dia mantém-se cinzento mas a chuva amainou. É melhor aproveitar, pensámos todos.
Segundo vislumbre: o castelo Templário de Ponferrada, também ela ligada, desde há séculos, ao caminho, onde chegámos, molhados, arrepiados, cansados e com uma vontade de chegar depressa. E sem tempo, nem vontade para contemplações histórico-culturais metemos por caminhos enlameados, ladeados de frescos vinhedos até Cacabelos.

BUEN CAMIÑO!

domingo, 19 de julho de 2009

ETAPA - 6



Os caminhos compridos e planos, monótonos, as suaves inclinações, as árvores isoladas e um indomável vento que nos fustiga a cara e nos impede de andar, foram as características desta longa etapa que só terminou em Hospital de Órbigo.
As bonitas construções de adobe e nomes como El Burgo Ranero e Mansilha de las Mulas, outrora importante centro pecuário, a crer na onomástica, ficaram-me na memória pelo nome insólito que possuem. Depois desta aldeia que comecei a avistar lá ao longe, como uma miragem, e que parecia ser sempre distante, o caminho, logo à saída, depois de passar a ponte de pedra, mete à esquerda e segue paralelo à estrada. Cruza-se novamente com ela em Puente de Villarente e, enquanto esperávamos pelos elementos do grupo que habitualmente andavam mais à frente, que, paradoxalmente, por essa razão se perderam de nós, já que enquanto nos esperavam acabaram por ser ultrapassados sem se aperceberem, também já me perdi, ah!... dizia eu que, aí, em Puente de Villarente, saboreámos o sol da manhã numa bela esplanada, e matei mais uma vez a interminável fome, com mais um bocadilho, um gelado, umas bolachas,… eu sei lá o que comi: uma fome imorredoura acompanhou-me durante todo o tempo.
Recordo este troço do caminho como perigoso, já que se confunde com a estrada nacional, muito movimentada, e exige muita atenção ao ser percorrido. Mas também aí existem virtudes, como na vida, mesmo nas depressões existe sempre uma vantagem, há que sabê-las aproveitar, neste caso eram de terceira ordem, simplesmente gustativas, aí, comprámos umas maravilhosas cerejas, eu achei maravilhosas, mas já não sei se eram exactamente assim, se era a minha fome permanente que as considerava como tal, é como diz o ditado: quando há fome não há ruim pão. E ao longo dos caminhos poeirentos lá as fomos depenicando, exactamente como os pássaros, até ao “Alto del Portilho” de cuja colina se pode avistar a cidade de Leon, que, na primeira vista, impressiona pelas cores fores quentes dos seus altos prédios.
De Leon, sede da famosa VII Legião Romana, não esqueço as boas-vindas dadas pela bonita Ponte Castro, não esqueço a monumentalidade do gótico na catedral, o espectáculo de cor dos seus vitrais, não esqueço as suas muralhas romanas, as suas ruas, estreitas, de outra época, da época em não havia automóveis, e as necessidades dos homens eram outras: protecção gregária. Não esqueço os leões de ar pensante sentados em pequenos pilares rectangulares, que não metem medo a ninguém apesar de unhados, e ladeiam a capelinha do século XII, lá bem no centro do velho burgo, exibindo orgulhosamente a sua coroa de rei a encimar um vaso de lírios, para não esquecer a ascendência à coroa francesa, em pergaminho desenrolado, cinzelada por esmeradas e nobres mãos de canteiro.
Não olvido o marco indicador do caminho que diz 330 Km.
A partir da catedral seguimos as conchas de bronze cravadas no solo, e antes de entrarmos mais uma vez, no caminho da estrelas, nos enigmáticos córregos da história, antes de passar sem ver a Vigem del Caminho, padroeira de Leon, antes de nos refrescarmos numa maravilhosa fonte de águas cristalinas, tivemos que nos embebedar com a beleza do comprido frontispício do antigo Hospital de S. Marcos, actualmente Parador Nacional, ou seja, hotel de primeira categoria. Perante tamanha harmonia, perante tanta imagem em alto-relevo, nasce a vontade de querer saber mais, de querer saber tudo (quem? como? quando? porquê?), vontade essa frustrada, naturalmente, pelas das circunstâncias da viagem, mas porque as coisas do espírito não entendem as razões da física, um nervoso miudinho, stressante, toma conta de mim, impede-me de raciocinar convenientemente e sinto vontade de sair o mais rápido possível, depois de mais uma foto de grupo.
Mas antes de chegar ao destino, ainda me estava reservado saborear, no pico do calor, o melhor fino alguma vez bebido, não que a cerveja fosse da melhor qualidade, era normal, creio que tinha nome de santo, mas com garganta ressequida como tinha, desidratado como estava, já que me tinha esquecido de encher as vasilhas do quadro da bicicleta na última fonte encontrada, nada melhor que a cerveja e, dificilmente esquecerei a frescura dessa caña, emborcada, quase de uma só vez, num pequeno café em Villadangos del Páramo.
Em Hospital de Órbigo chegámos, já tarde, e uma chuva miudinha parecia anunciar a mudança de tempo.
Quando se desemboca no fim da rua, fica-se impressionado pela singularidade da comprida ponte sobre o rio Órbigo: é curva, inclinada, e de olhais desiguais. É inevitável recordar o famoso cavaleiro “D. Mas de Quiñones” e os seus feitos, porque a pedra granítica erguida logo à sua entrada, num galego medieval, talvez, galaico-português, não sou especialista, faz questão de o descrever. Ali, pela superioridade da sua dama, Leonor Tovar, e o seu amor por ela, este cavaleiro, à luz desta época adjectivado de quixotesco, lutou com trezentas lanças de outros tantos cavaleiros, desafiados ao atravessar da ponte. Quem quisesse evitar o confronto atravessava o rio pelo seu leito sendo, claro! ignominiosamente considerado cobarde. Por este facto, esta ponte é conhecida “Ponte da Passagem Honrosa" e, ainda hoje, esse povo que não esquece a história faz questão de preservar esse acontecimento, promovendo, tanto quanto sei anualmente, justas medievais a jusante da ponte, em pleno leito do rio, que por bem pouco não presenciamos, já que se realizavam no dia seguinte.

BUEN CAMIÑO!

terça-feira, 14 de julho de 2009

ETAPA - 5


Terminamos em Sahagún que, segundo reza história, cresceu à volta do Mosteiro de S. Facundo (daí o seu nome), e dormimos num do albergue espectacular. Trata-se de um edifício antigo, adaptado para aquelas funções, no entanto, porque foi mantida toda a traça, nomeadamente as paredes em adobe e “tijolo burro”, emprestam-lhe um ar especial reforçado pela música ambiente que adocicava a alma e o corpo dorido pelos 104 quilómetros percorridos, cheios de desníveis curtos mas elevados.
Nessa manhã acabámos por sair um pouco mais tarde que o habitual, já que foi necessário recuperar antes da partida um telemóvel, encerrado na área administrativa durante toda a noite, e que nós desconhecíamos o seu fecho.
O caminho segue praticamente em linha recta até Hontanas, recordo as longas linhas de saibro bordejadas por extensas searas onde vermelhavam uma miríade de sedosas papoilas, esvoaçando ao sabor da leve e agradável brisa que se fazia sentir. Depois segue por um longo vale e, antes de surgir Castrojeriz, passa-se pelas enigmáticas ruínas do antigo convento de santo Antão, onde morreram milhares de peregrinos afectados pelo “fogo de Santo Antão”, uma enfermidade causada pela ingestão de um fungo, o ergot, que cresce no centeio e provoca uma espécie de gangrena nas extremidades do corpo. Castrojeriz surpreende pelas ruínas do castelo que continua a olhar lá de cima do cerro, isolado, a famosa Igreja de Nossa Senhora de Manzano, já celebrada por Afonso X nas suas cantigas.
Depois de sair de Castrojeriz torna-se necessário vencer a curta, mas acentuada, arriba até ao “Alto de Mosterales” e, lá no alto do cerro, parar, cerrar os olhos para melhor escutar o vento que nos fala da formação de Portugal, de juramentos, que verseja odes de cavaleiros em denodados combates, que fala de vassalagem e traição, de dor e sofrimento, de moiras encantadas, de casamentos e mistérios, depois, depois abrir os olhos, olhar em redor, e desfrutar, longamente, porque este olhar tem que ser longo, a vista esplendorosa dessa velha e encantadora Castela.
Se se continuar a pedalar durante uma boa hora, já em plena Tierra de Campos, chega-se ermida de S. Nicolau, construída em pedra granítica, creio (material de construção que vai deixar de ver daqui em diante), antigo hospital de peregrinos, erguida mesmo ao lado da ponte medieval sobre o rio Pisuerga, que separa as províncias de Burgos e Palência, mandada construir por Afonso VI, segundo o placard informativo especado ao seu lado, rei de Leão e Castela, pai de D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques.
Lembro-me que o caminho entre Boadilha del Caminho e Frómisté, grande parte dele, percorrido ao lado do canal de irrigação de Castela, mas a riqueza e esplendor histórico que possuem, confesso, que me passaram um pouco ao lado, tal era o cansaço e, simultaneamente, a vontade de chegar ao fim, de fazer quilómetros pelas infinitas planícies que se deparavam à nossa frente.
O caminho depois desta última aldeia é paralelo à estrada nacional, é uma linha recta perfeita e, ao longo das longas horas que passei sentado sobre o incómodo selim, que nem a maravilhosa pomada cicatrizante colocada todas as manhãs conseguia amaciar, distraía-me com os caminhantes que, lá ao longe, no alto da próxima subida, se definiam como formigas e engrandeciam à medida que me aproximava. Distraía-me a olhar a vieira dos quatro marcos brancos da indicação do caminho, gémeos e em forma de quadrado, que definiam as travessias para os grupos populacionais laterais e também, e porque não escrevê-lo, com os tufos de ervas altas que bordejavam a terra batida, e que, delicadamente, roçagavam levemente a minha perna direita.
Dessas longas rectas, e dos núcleos populacionais que ladeiam o caminho, ficou impressa na minha memória, e na minha máquina fotográfica, o exterior da majestosa igreja românica de Santa Maria A Branca em Vilalcázar de Sirga (com origem numa comenda dos templários) que, impressiona pela sua majestosidade, agigantada pelo pequeno núcleo de casas que a circundam e que, sei hoje, é um verdadeiro tesouro histórico.
De Carrión de los Condes, onde já chegámos a entrar pela tarde dentro, onde saboreámos um pollo à sombra de uma velha igreja (que não decorei o nome) em plena hora da siesta, e que, por isso mesmo, nem pudemos visitar.
Depois foi um sem número de quilómetros monotonamente percorridos, debaixo de um sol ardente, monotonia essa quebrantada pelas leves ondulações do terreno, pelas belas igrejas de um tijolo vermelho e a sua bela arcaria em forma de ferradura, pelas casas térreas com paredes de adobe, cor de lama, gravando na minha mente a impressão, mais uma vez, de termos recuado no tempo dezenas de anos, embora agora as razões sejam outras.
Já com Sahagún à vista, a senda prega-nos um pequeno susto, fazendo-nos crer que segue noutra direcção, mas não! não passa de um pequeno desvio que nos obriga a passar na ponte dos peregrinos e na bonita ermida da virgem da Ponte, em tijolo cozido, como todas as construções antigas e, onde à sombra de uns salgueiros fizemos mais um amigo, um idoso, que em quinze de minutos de conversa, e na sua solidão, foi desfiando de forma autêntica, todos os problemas políticos e agrícolas daquela região, e nós, mais mortos que vivos, mais ouvintes que falantes, fomos entremeando com pequenos “sis e “nos” a demonstrar interesse no monólogo.


As forças iam começando a faltar.

BUEN CAMIÑO!

quinta-feira, 9 de julho de 2009

ETAPA - 4


No início da quarta jornada as extensas planícies riojanas, verdes, muito verdes, continuaram a surgir de ambos os lados do caminho. Dormimos em “Hornilhos del Caminho”, e tal como indica o seu nome, é uma aldeia tipicamente jacobeia: a sua única rua coincide com o caminho. O albergue fica mesmo ao lado da igreja e estava completamente esgotado, valeu o polidesportivo para dormir debaixo de telha. Na previsão de andamento que, invariavelmente, fazíamos à hora do meio-deia, combinámos terminar o dia em “”Rabe de las Calzadas”, a 10 km antes de Hornilhos, mas, também ele estava esgotado, e foi mais um percalço, já que depois de ter percorrido 90 Km, tivemos que, forçosamente, fazer mais 10, o que não foi nada agradável.
Apesar das longas rectas senti que os declives começavam a acentuar-se. Atravessámos ondulantes searas, passamos Grañón e surge Redecilha del Caminho onde nos abismámos com a lindíssima pia baptismal cujo trabalho rendilhado de relevo representa uma cidade, ou melhor, as muralhas de uma cidade, provavelmente Jerusalém. Depois foi sempre a pedalar, durante uma hora, ou mais, até chegar a Belorado, cuja riqueza cultural ficou para outra oportunidade, porque o caminho passa ligeiramente ao lado, e a fome, que era muita, era imperioso saciar no primeiro bar que surgisse que, por sorte, foi o rico albergue de Belorado, que até piscina tinha.
Em San Juan de Ortega, onde almoçámos, quer dizer, onde saciámos a fome com mais um bocadillo de janbon, foi segundo rezam os cânones do caminho, discípulo de San Juan de la Calzada a quem, e aqui fica aqui mais uma curiosidade, se deve a construção da ponte de 24 arcos sobre o rio Oja, mesmo à saída da vila, bem como a calçada, e daí o epíteto de Calzada, que vai de Nájera até Redecilha del Caminho.
San Juan de Ortega, engenheiro, também ele dedicou a sua sabedoria aos peregrinos. O elevado número de assaltos e assassinatos que os romeiros sofriam ao longo dos Montes de Oca, motivou-o a construir uma Igreja e um albergue para os acolher. A abside da igreja é lindíssimo, o seu sepulcro romântico, no interior, a não perder. Mais uma vez se sente o peso pedras, não o da gravidade, claro! o do tempo que as vai encanecendo. Naquele santuário, isolado, fica-se com a sensação de regressar a um outra era, onde as coisas têm outro significado, outra dimensão e que, confesso, gostava de ter vivido. Veja-se o milagre da luz que todos os anos acontece nos equinócios da Primavera e Outono: no interior da igreja, um raio de luz do poente ilumina durante 5 minutos o capitel triplo que representa o ciclo da natividade.
Mas a maior impressão foi a catedral de Burgos, terra de “El Cid”, que se impõe pela imponência e pela harmonia Isabelina de todos os seus outões, janelas, pórticos. Todo aquele rendilhado é filigrana gondomarense. Lá dentro, não deixei de reparar na capela de Santa Ana, onde o escudo das quinas aparece várias vezes, sempre como parte integrante da grande Espanha. E se a construção aconteceu na época filipina, o que presumo, assim era, efectivamente, mas para um português, crente na portugalidade, não deixa de ser estranho.
Despedimo-nos das agulhas da catedral,com a dúvida se não seria melhor terminar por ali a etapa, mas ultrapassada essa indecisão, metemos, mais uma vez, pelos páramos castelhanos. A paisagem é agora mais áspera e mais pobre. Essa aspereza sentia depois de deixar Atapuerca e os seus sagrados menires (levantados há milhões de anos pelo nosso antecessor), ao longo de mais uma pedregosa e barrenta ladeira, que nos havia de aproximar de Hornilhos.

BUEN CAMIÑO!

quinta-feira, 2 de julho de 2009

ETAPA - 3


Esta etapa foi percorrida sempre sobre um sol abrasador refrescado apenas pelas amplas paisagens matizadas de verde. Ora eram longos campos de trigo, ora longos valados alinhados do afamado vinho de “La Rioja” que provámos na fonte vinícola visitada no dia anterior, implantada à sombra do Mosteiro Beneditino de Santa Maria La Real de Irache, antigo hospital de peregrinos. Além dos declives permanentes que nos fizeram suar as estopinhas para os vencer, e que põem à prova de qualquer um a sua capacidade de resistência, a gravilha dos 76 Km percorridos também nada ajudava na tracção das rodas.
Los Arcos é a fronteira entre Navarra e Castela. Impressionou-me a majestosidade e a quantidade de casas brasonadas que definem as longas e apertadas ruas. O caminho passa em frente à magnífica Igreja de Santa Maria, que visitámos no final da tarde do dia anterior, atravessa a estrada nacional, contorna o cemitério e, depois da primeira subida matinal que, de bom humor, considerámos de boas-vindas ao caminho, prolonga-se ao longo dos imensos campos verdes, afunila-se lá ao fundo, desaparece e volta a reaparecer, logo de seguida, na encosta do monte seguinte, para finalmente surgir Sansol, onde chegámos depois de duas boas horas a pedalar. Passa-se depressa que a senda vai descer e é preciso aproveitar, no outro lado da encosta avista-se Torres del Rio, desce-se por um caminho pedregoso, sobe-se por uma rua cimentada, como tantas outras, e sente-se a necessidade de um empedrado português, que enquadraria melhor a vetustez das ruas. Parámos para estabilizara respiração e pagámos um euro, que não choro, para visitar a belíssima Igreja do Santo Sepulcro.
Os períodos de descanso ao longo do dia foram poucos e, quase sempre, aproveitando os locais onde as lendas se misturam com a actualidade. Em Logroño admirámos, ao longe, o famoso Castelo de Clavijo que, lá do alto, continua a dominar toda a região e a simbolizar, também ele, os tempos da reconquista. Visitámos mais uma Igreja, a Igreja de Santiago, creio que ser assim designada e, logo à entrada, reverenciei-me perante uma simples placa que afirmava com todas as letras, em jeito de advertência: “… povo que esquece a sua história sujeita-se a que tudo se repita”. E logo a seguir continuava: En este lugar asesinaro el 3 de Setiembro de 1936 a 27 personnas entre ellas, BIENVENIDO VELASCO MENDICUTE victimas de la represion franquista, su dellito estar afiliado a la izquierda Republicana de Ábalos”
Depois de passar Navarrete, vinhedos, Ventosa, vinhedos, vinhedos, vinhedos, chegámos a Nájera, que afirma a sua hospitalidade escrevendo que em “Nájera el pelegrino es najerino”. Aqui, em Nájera, que significa “entre pedras” antiga capital de Navarra, voltámos a encontrar o intrépido Rolando, agora a derrubar o gigante Ferragut, um malvado muçulmano, horrível, de turbante e tez escura, que mantinha prisioneiros os pobres cristãos no seu castelo, que não vimos.
Depois de carimbar a caderneta subimos a íngreme rua e entrámos mais uma vez num caminho de terra batida, já o sol começava a declinar. Exaustos passámos Azofra, fotografámos a sua picota, em Ciriñuela rezámos para que Santo Domingo da La Calzada estivesse perto, e onde, segunda a lenda, também o galo cantou depois de morto, tal como em Barcelos.
Dormimos num belíssimo albergue, com alguma privacidade, ressonámos à vontade, já que no quarto disponibilizado estava apenas o nosso grupo, e o Mad Max, figura italiana, surreal, saída do tal filme apocalíptico.

BUEN CAMIÑO!