Terminamos em
Sahagún que, segundo reza história, cresceu à volta do Mosteiro de S. Facundo (daí o seu nome), e dormimos num do albergue espectacular. Trata-se de um edifício antigo, adaptado para aquelas funções, no entanto, porque foi mantida toda a traça, nomeadamente as paredes em adobe e “tijolo burro”, emprestam-lhe um ar especial reforçado pela música ambiente que adocicava a alma e o corpo dorido pelos 104 quilómetros percorridos, cheios de desníveis curtos mas elevados.
Nessa manhã acabámos por sair um pouco mais tarde que o habitual, já que foi necessário recuperar antes da partida um telemóvel, encerrado na área administrativa durante toda a noite, e que nós desconhecíamos o seu fecho.
O caminho segue praticamente em linha recta até
Hontanas, recordo as longas linhas de saibro bordejadas por extensas searas onde vermelhavam uma miríade de sedosas papoilas, esvoaçando ao sabor da leve e agradável brisa que se fazia sentir. Depois segue por um longo vale e, antes de surgir
Castrojeriz, passa-se pelas enigmáticas ruínas do antigo convento de santo Antão, onde morreram milhares de peregrinos afectados pelo “fogo de Santo Antão”, uma enfermidade causada pela ingestão de um fungo,
o ergot, que cresce no centeio e provoca uma espécie de gangrena nas extremidades do corpo.
Castrojeriz surpreende pelas ruínas do castelo que continua a olhar lá de cima do cerro, isolado, a famosa Igreja de
Nossa Senhora de Manzano, já celebrada por Afonso X nas suas cantigas.
Depois de sair de
Castrojeriz torna-se necessário vencer a curta, mas acentuada, arriba até ao “Alto de Mosterales” e, lá no alto do cerro, parar, cerrar os olhos para melhor escutar o vento que nos fala da formação de Portugal, de juramentos, que verseja odes de cavaleiros em denodados combates, que fala de vassalagem e traição, de dor e sofrimento, de moiras encantadas, de casamentos e mistérios, depois, depois abrir os olhos, olhar em redor, e desfrutar, longamente, porque este olhar tem que ser longo, a vista esplendorosa dessa velha e encantadora Castela.
Se se continuar a pedalar durante uma boa hora, já em plena
Tierra de Campos, chega-se ermida de S. Nicolau, construída em pedra granítica, creio (material de construção que vai deixar de ver daqui em diante), antigo hospital de peregrinos, erguida mesmo ao lado da ponte medieval sobre o rio
Pisuerga, que separa as províncias de Burgos e Palência, mandada construir por Afonso VI, segundo o placard informativo especado ao seu lado, rei de Leão e Castela, pai de D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques.
Lembro-me que o caminho entre
Boadilha del Caminho e
Frómisté, grande parte dele, percorrido ao lado do canal de irrigação de Castela, mas a riqueza e esplendor histórico que possuem, confesso, que me passaram um pouco ao lado, tal era o cansaço e, simultaneamente, a vontade de chegar ao fim, de fazer quilómetros pelas infinitas planícies que se deparavam à nossa frente.
O caminho depois desta última aldeia é paralelo à estrada nacional, é uma linha recta perfeita e, ao longo das longas horas que passei sentado sobre o incómodo selim, que nem a maravilhosa pomada cicatrizante colocada todas as manhãs conseguia amaciar, distraía-me com os caminhantes que, lá ao longe, no alto da próxima subida, se definiam como formigas e engrandeciam à medida que me aproximava. Distraía-me a olhar a vieira dos quatro marcos brancos da indicação do caminho, gémeos e em forma de quadrado, que definiam as travessias para os grupos populacionais laterais e também, e porque não escrevê-lo, com os tufos de ervas altas que bordejavam a terra batida, e que, delicadamente, roçagavam levemente a minha perna direita.
Dessas longas rectas, e dos núcleos populacionais que ladeiam o caminho, ficou impressa na minha memória, e na minha máquina fotográfica, o exterior da majestosa igreja românica de
Santa Maria A Branca em
Vilalcázar de Sirga (com origem numa comenda dos templários) que, impressiona pela sua majestosidade, agigantada pelo pequeno núcleo de casas que a circundam e que, sei hoje, é um verdadeiro tesouro histórico.
De
Carrión de los Condes, onde já chegámos a entrar pela tarde dentro, onde saboreámos um
pollo à sombra de uma velha igreja (que não decorei o nome) em plena hora da siesta, e que, por isso mesmo, nem pudemos visitar.
Depois foi um sem número de quilómetros monotonamente percorridos, debaixo de um sol ardente, monotonia essa quebrantada pelas leves ondulações do terreno, pelas belas igrejas de um tijolo vermelho e a sua bela arcaria em forma de ferradura, pelas casas térreas com paredes de adobe, cor de lama, gravando na minha mente a impressão, mais uma vez, de termos recuado no tempo dezenas de anos, embora agora as razões sejam outras.
Já com
Sahagún à vista, a senda prega-nos um pequeno susto, fazendo-nos crer que segue noutra direcção, mas não! não passa de um pequeno desvio que nos obriga a passar na ponte dos peregrinos e na bonita ermida da virgem da Ponte, em tijolo cozido, como todas as construções antigas e, onde à sombra de uns salgueiros fizemos mais um amigo, um idoso, que em quinze de minutos de conversa, e na sua solidão, foi desfiando de forma autêntica, todos os problemas políticos e agrícolas daquela região, e nós, mais mortos que vivos, mais ouvintes que falantes, fomos entremeando com pequenos “sis e “nos” a demonstrar interesse no monólogo.
As forças iam começando a faltar.
BUEN CAMIÑO!
3 comentários:
Olá!
Descrição encantadora!Se um dia eu percorrer este caminho será como se tivesse voltando lá!Deu até para sentir a brisa e o perfume das papoilas!
Imagino como deve ser emocionante cada etapa vencida!
Continuemos !Ânimo!
Buen camiño
Abraço
Wanda
São Paulo, 14 de julho de 2009
Olá Sá Gué
Entrei agora no seu roteiro - magnífico!
Como experiência ( a tal viagem interior...) foi seguramente inesquecível. É um sonho que tenho, mas sempre adiado. Parabéns por tê-la levado a cabo e obrigado por tê-la partilhado.
Abraço
Daniel
Continuo a seguir o seu roteiro com muito interesse. Vou vendo os lugares por onde passa, ouvindo os ruídos das folhas no perpassar da brisa, até sentindo o sol de derreter chumbo.
Não sabia que a "nossa" cravagem-do-centeio" se chamava "ergot". De resto, só sabia que era usada como forte abortivo, mas que muitas das vezes levava simultaneamente a mãe e a criança.
Um grande abraço
Julia
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