quarta-feira, 29 de julho de 2009

ETAPA - 8 ( Parte 1)


A etapa adivinhava-se maravilhosa, metafísica, mas simultaneamente dura. O dia nascia cinzento, as roupas ainda molhadas da chuva do dia anterior, arrepiava-nos e criava a sensação, nada agradável, de frio, que se misturava com a impaciência de finalmente subir ao “El Cebreiro”. Com a música sibilina de Wagner na cabeça e o misticismo de Parsifal , arrancámos, depois de encontrar a primeira vieira indicativa da direcção: Vilafranca del Bierzo, importante povoação também ela com profundas tradições jacobeias. Hoje, transcorrido um mês, estou com a sensação de que nem gozei a beleza desta vila, nem as primeiras paisagens galegas intensamente verdes do fértil vale do Bierzo, tal era a ânsia de querer subir depressa a 1300 m de altitude. De qualquer forma, afirmo: pela grandeza dos palácios e das casas senhoriais que vi, com estes que a terra há-de comer, terá tido um grande poder económico.
O albergue municipal de Cacabelos é especial. Não por se tratar de um autêntico hotel de cinco estrelas, verdadeiro peregrino aceita o que lhe dão, é especial porque se trata de um renque de pequenos quartos construídos em madeira, como se fossem berlindas de um comboio, dispostas em redor do adro de uma das Igrejas da vila. Cada um dos cubículos dispões de duas camas e apesar de o isolamento auditivo não ser nenhum, dava alguma privacidade. O pequeno-almoço também foi especial. Era domingo, todas as lojas estavam fechadas, tínhamos em nossa posse leite e cereais, que tivemos que comer sem colher, já que o supermercado visitado à chegada, ou seja, na tarde anterior, não tinha tais artefactos.
À saída de Vilafranca del Bierzo, depois de atravessar a ponte sobre o rio, continua-se a direito, segue-se pela antiga estrada Nacional VI, está correcto, também achei estranho, a designação é em numeração romana, e esta é uma importante informação, é que nesse troço o caminho estava mal assinalado, ou então a nossa capacidade de observação e discernimento já estava alterada e levou a que nos perdêssemos. Depois o caminho segue, plano, sobranceiro ao rio Valcarce. Grande parte desse troço é feito sobre alcatrão mas protegido do movimento intenso dos veículos, que cruzam a estrada, por pesados “rails” de cimento. Ao longo desses vinte e tais quilómetros vá saboreando as casas xistosas de Pereje e Trabadelo, a caixilharia das portas e janelas de um azulão que lhe fica bem e fere a vista de Ambasmesa, La Portela e Vega de Valcarce, o delicioso ferro-forjado das varandas onde pingam cuidadas sardinheiras em Ruítelan e Las Herrerias, e esta última aldeia é o sinal de que vai entrar nas fortes subidas de O Cebreiro. Nesse ponto faltam apenas 9 quilómetros, mas a dureza é tanta que mais parecem 29. Descanse um pouco em “La Faba”, espraie o olhar pelas linhas de montes que se sucedem, se as névoas o permitirem, senão, finja estar numa outra época e deixe-se levar pelas asas da imaginação, sinta o silêncio da terra, o ladrar distante de um cão, os irados mas meigos vocábulos bosquímanos de um pastor que se misturam com o chocalhar do gado, acorde, está em altitude elevada, o tempo pode mudar repentinamente, até politicamente,
siga devagar em direcção a Laguna de Castilha, a inclinação do caminho atenua-se, escute o bater do coração e vá gozando a beleza do lendário Monte Salvat.
O Cebreiro, fruto das duras condições climatéricas, foi um dos primeiros locais a acolher peregrinos. É igualmente célebre pelo milagre eucarístico. Diz a lenda que o pão e vinho se transformaram em carne e sangue quando um monge, descrente, repreendeu um camponês que subia até ali, no meio de um temporal medonho, para assistir à Eucaristia. Desde então, em 8 de Setembro, milhares de peregrinos reúnem-se no local par celebrar o milagre.
Tem origem pré-romana, celta, diz a história, o peso do tempo sente-se, de imediato, logo que se vence a última gelha do terreno. É uma povoação de pedra escura, xisto, cabanas redondas, colmadas, ruelas estreitas, de calçadas de largas lajes: um maravilhoso e misterioso lugarejo perdido no meio da serra. Não fora o frio, bem como a chuva que vinha em rabanadas intensas, além da pouca roupa que tinha, ficava ali durante toda a tarde a percorrer os múltiplos recantos das ruelas.

BUEN CAMIÑO!

3 comentários:

Wanda Wenceslau disse...

Olá!
Essa parte do caminho você retratou cheia de dificuldades, embora descreva uma linda paisagem.
Muito bem colocada a ópera de Wagner, Parsifal! Tal como o herói em busca do Santo Graal,e com tantas tentativas frustradas que o desorientaram, você seguiu em frente.
Perdoe se exagero na comparação,mas ainda assim sinto nessa busca pelo Caminho, uma busca semelhante.
Talvez por isso você tenha posto em evidência o Parsifal.
Aliás ,muito bem executada no vídeo do tópico postado.
Corrija-me se eu estiver equivocada.
Abraço
Wanda

António Sá Gué disse...

A Wanda é um excelente leitora!...

Daniel de Sousa disse...

Olá Sá Gué!
Continuo a seguir com muito interesse o seu roteiro do Caminho.E bem assim o que se entrevê, para além da paisagem, de uma certa "peregrinação interior" como dizia, e muito bem, o Alçada Batista. Aguardo já com alguma expectativa o botafumeiro e o abraço ao santo.
Daniel