sábado, 11 de outubro de 2008

O comboio

1977. O comboio marcava o tempo, que bem podia ser adjectivado de medievo: as casas escuras e térreas, cobertas a telha-vã, paredes de pedra solta, sem reboco, partilhadas com os animais, os tavolados toscos e sujos varridos a vassoura de giesta, a iluminação de petróleo. Será necessário melhor caracterização? Sim, alguém disse. Agricultura: de subsistência. Ruas: empedradas e lamacentas. Horário de trabalho: de sol a sol. Horológios: o da torre da igreja, que beatificava as horas com “ave-marias”, e o comboio, que as mundanizava. Era depois de o apito das dez (horas de Terça) entoar pelos campos que se matava a fome e aliviava as dobradiças do moirejar. Era depois de passar o do meio-dia, hora de Sexta, que se jantavam mais uns mordos. Era depois do apito das seis da tarde, horas de Véspera, que se largava a rabiça do arado.
– Vamos parar, que já lá vai o comboio – dizia o João Caturra, que, debaixo de um sol escaldante, segava desde os primeiros alvores do dia. E erguia o costado, deitava a mão às cruzes, e ficava a olhar ao longe aquele mostrengo negro como a fuligem que se aproximava lentamente. Às vezes, a seguir ao apito, ouvia-se o toque a rebate que trespassava a canícula, e ao longe surgia uma coluna de fumo negro, que só não engrossava porque todo o poviléu acorria apressadamente, quase em transe.
– É lá para os lados do Rebentão... – e o povo acorria, de ramo de giesta ou pinheiro pegajoso na mão, desatando a bater as lambras, que dificilmente se extinguiam.
– É bater de fora para dentro... – aconselhavam os mais experientes, já conhecedores de tal ciência. E, de facto, quando se batia de cima para baixo, parecia mais um sopro de vida que uma pancada de morte.
Mas, fosse como fosse, o comboio já fazia parte da vida e da paisagem. Aquelas linhas de montes corcovadas e encavalitadas já não seriam as mesmas se várias vezes por dia aquele comboio tardo e sujo não transmontasse a paisagem azulada, ora num sentido, ora noutro. Da chaminé elevavam-se volutas espiraladas de fumo negro, que pairavam por alguns segundos acima das berlindas, delindo-se no ar lentamente ou volatilizando-se se uma rabanada de vento lhes batesse nas carantonhas. Os vagões de mercadorias, de taipais baixos, seguiam ordeiramente na traseira, deixando ver as sacas de adubo ou cimento arrimadas. Dos possantes êmbolos, polidos e refulgentes, que ligavam as rodas, uns fuminhos esbranquiçados esvaíam-se quando o som de ar comprimido se soltava estridentemente. Resfolegava tal como um cavalo, mas mais forte, a fazer doer o ouvido, e a parecer que ia desconjuntar-se num amontoado de ferros. Na estação matava a sede: a torneira mastodôntica, depois de apontada à bocarra superior da caldeira cilíndrica, vomitava um jacto de água que o depósito, pernalta e cinzentão, guardava.
Depois de matar a sede, um apito estridente fendia o silêncio e espaventava a passarada entretida a rebuscar nas amoreiras dos lameiros, que voava em bandos assustadiços e estramontados como se não tivessem destino. Quando o apito era mais prolongado, aparecia sempre alguém a encontrar um significado especial, acabando por chalacear:
– Apita, Abílio!... – O Abílio era o maquinista natural da terra, que assim cumprimentava todos, e de uma só vez.
As berlindas eram bangalós ambulantes. Duas varandas amaneiradas à frente e atrás, com janelas airosas de guilhotina invertida (a abrir, quando desce, e a fechar, quando sobe), e de ponta a ponta. Como nos rebanhos existe sempre uma ovelha preta, que imediatamente se distingue das outras, também o comboio tinha uma carruagem diferente. Nada de verde-tropa e tectos pretos como as outras. Não! Eram riscas brancas e vermelhas, a lembrar uma papoila em campo de trigo. Arredondada e garrida, ostentava ufanamente a palavra CORREIO e gostava de se posicionar logo atrás da máquina, como se sustentasse aspirações a guieira.
Se não era guieira, podia muito bem ser considerada primeira. Era ela que guardava e trazia os ventos, nem sempre auspiciosos, de além-dos-montes. Já trouxe ventos de guerra, ventos de fome e de racionamento; ventos de liberdade trouxe há meia dúzia de anos atrás. Agora, trazia a sua própria extinção. Era o seu suicídio, vingado pela sua própria lentidão, de não ter acompanhado os tempos. Os jornais nessa manhã escreviam ostensivamente: CP FECHA LINHA DO SABOR.
"..."
In: Contos dos montes ermos

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