sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A feira da vila

Enfeirar era um dia de festa, era “ir à vila” ao oitavo dia, com carava, se possível, empinocar-se, vestir a jaqueta guardada para ocasiões especiais, e apreçar, muito mais do que mercar, que os dinheiros eram poucos. Levantar cedinho, apanhar a camioneta da carreira, que passava despois das sete, a dos estudantes, matar o bicho no café do Basílio, e depois, sim, descer a Corredoura, passar uma primeira vez, abaixo/acima, a cheirar o ambiente da mercância, que começava a tomar forma, nas labirínticas ruelas já bem desenhadas. Nessa hora da manhã, a grande parte dos feirantes eirava pelo chão ou, então, pela improvisada mesa de contraplacado a pesada veniaga, aliviando os amortecedores das atulhadas carrinhas de caixa fechada, montava o estenderete debaixo da barraca, para dizer bem e depressa, ainda o ganapo que veio ao mundo no último Inverno, sempre ranhoso, fruto das invernosas manhãs, e que tardava em não largar os cueiros, no dizer da mãe, dormia o último sono agitado, embrulhado em surrentos farrapos que almofadavam a caixa de papelão a dizer OMO lava mais branco. Outros, os mais atrasados, de marra em punho, a denotar alguma falta de jeito, martelavam a estaca já esborcinada pelo muito uso, que em cada marretada se enterrava, lentamente, na terra saibrosa, dura, nunca conhecedora de enxada ou charrua. Depois eram as dificuldades do costume ao estender o toldo, mais capaz de proteger do sol que da chuva, sobre o esqueleto de ferro galvanizado. Havia de se levantar sempre uma rabanada de vento a enfuná-la, como se fosse gávea de proa, e lá vinham mais uns vitupérios, também eles intempestivos, ao atar dos amantilhos. Os mais fervorosos, ou talvez os mais sedentos adeptos dos seus direitos, discutiam impetuosamente, a ponto de mandar chamar a guarda, sobre o local competente para prantar a barraca, que quanto mais próximo da entrada melhor, e que o companheiro de mester lhe tinha roubado. Depois, numa segunda passagem, já as nove tinham soado há um bom migalho na bojuda torre da Igreja, e uma segunda vaga de camionetas tinha descarregado os gentios das redondezas na praça, era tempo de ir à procura de uma cara conhecida, parar no meio da ruela a entupir o fluxo da mole informe que fluía rua abaixo, discutir o que cada um viu, ou, então, saber as últimas de algum caso que corria de boca em boca. E quando a ânsia de querer ver se adensava e já se tornava difícil de suster, um parece que pariu pr`ali a galega, dava o mote, e iniciava-se uma nova corrida, que os carrinhos de choque, ao longe, pareciam imitar, ruela fora, ziguezagueando, envolto num vozeio denso, entremeado pelos elogios à mercadoria que surgia de todos os lados, merecedora de um olhar mais atento, uma pausa mais acentuada: “entre, patrão, e venha ver a qualidade do produto...”.
"In: Contos dos montes ermos

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