sábado, 11 de outubro de 2008

A procissão

Não sei se existe alguma procissão que não seja antecedida por missa, mas aquela de que vos quero falar, que é minha e muito minha, desde sempre teve uma a antecedê-la. Nessa missa, de solene tradição, o andor padroeiro também participava, ficava no corredor central desenhado pela bancaria, de olhar pio e fitas estendidas, pedinchando, mesmo defronte ao altar-mor. A populaça, endomingueirada, acorria à igreja, pequena para tanta fé, a ouvir mais uma vez a crónica do santo, sarmoneada lá do alto do púlpito de ferro forjado, de escadas enroscadas à verticalidade de uma das bojudas colunas cilíndricas demarcadoras da nave do templo, por um acólito convidado especialmente para acto tão solene. E depois da educativa prédica hagiográfica, que glorificava sempre o martírio para vencer o mal, personificado por um pobre diabo, um espantalho, um bonifrates que havia de rebentar lá mais para diante, o padre, depois da devida genuflexão sacrária, dirigia-se para o portal de entrada e, do alto da soleira, enxergava a formação da mesma. No mesmo instante, os porta-pendões, de tez churrada pelo sol, a contrastar com a ebúrnea calvície da protecção conferida pelos chapéus de feltro, e que, de opa vermelha vestida, tinham assistido à missa, dirigiam-se aos mesmos, que, encostados à parede lateral ostentando ícones sagrados, pacientemente, esperavam que essas boas-almas os ostentassem. Os pegadores do andor elevavam a charola sempre de forma equilibrada, entrecortada entre palavras bichanadas, que em lugar de culto não é socialmente assertivo falar alto; “cuidado!”, “vá, agora!”, “devagar, devagar!”, não fosse o santo tombar, profanar a divindade, pecado capaz de levar à excomunhão, ou, sabe-se lá, à ordenação de algum auto-de-fé, que por bem menos, noutros tempos, bem entendido, foram sentenciados com o queimadeiro. Mas não se corria esse risco, que eu vi, com estes que a terra há-de comer, que o santo era de pau maciço – de pau maciço! –, o encaixe fora propositadamente talhado por mãos de engenhoso carpinteiro e o espigão de roscas, que também nada tinha de divino, perfurava a peanha e só por obra de um grande e humano mafarrico se soltaria.
"..."
In: Contos dos montes ermos

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