O objectivo final estava próximo, todos sentíamos isso, era necessário saborear os últimos recantos, as últimas dobras do caminho, os magníficos monumentos que continuavam a surgir pela frente, os cerrados bosques como aqueles que acobertam o caminho depois de
Melide, até as pequenas lápides que assinalam o local da morte de alguns peregrinos se tornava imperioso admirar, mas a chuva continuava a cair, de todas as formas e feitios e empurrava-nos para a frente, incentivava-nos a chegar naquele dia e, finalmente, saborear o nosso éden, o nosso lugar perfeito: um banho bem quente e lençóis brancos esticados.
E fomos pedalando, pedalando, conscientes que por maiores que sejam as tempestades, por mais pesadas que sejam as dificuldades, é seguindo em frente que se consegue lá chegar. E, pouco a pouco, conscientes de que estávamos no caminho certo, fomos vencendo os lombelos enlameados, as dores musculares, o desconforto geral à medida que íamos contando os quilómetros que faltavam. A ânsia de tal contagem decrescente era tanta que, por vezes, quando passávamos um marco indicador do caminho sem nos apercebermos, ficávamos descrentes se faltariam 20 ou 21, 18 ou 19. Parece ridículo pensar que depois de fazer oitocentos, mais ou menos um não terá significado, mas naquelas condições tinha, e tanto tinha, e não era só para mim, que nos últimos 15 km, as aldeias que se sucederam foram tantas
(Ras, Breas, Santa Irene [mártir portuguesa], Rúa, Pedrouzo, San Antón, Amenal, Cimadevilla, San Paio), que ficámos com a impressão que o caminho andava às voltas e não seguia em linha recta. A última dessa sucessão de aldeias é
Labacolla. Ao passar sobre a ponte, troçámos, fizemos dichotes com o banho que devíamos tomar, tal como faziam os antigos peregrinos, antes de se apresentarem ao santo, mas nenhum de nós se atreveu a desmontar da bicicleta.
Depois desse desfilar de pequenas aldeias surge o simbólico
Monte del Gozo, subimos para cumprir a tradição e abraçámo-nos, instintivamente, de contentamento, de vitória, de fé… Todos nós estávamos emocionados, vi-o no semblante dos meus companheiros, havia um brilho muito especial nos olhos e uma profundidade estranha no vínculo das rugas de expressão de todos eles. Vi bem. Tenho a certeza que, intimamente, todos nós cantámos
ULTREIA. Nenhum de nós tem o carácter muito expansivo e, talvez por isso, esses sentimentos não tiveram a correspondente expressão exterior, não houve grandes manifestações exteriores de júbilo mas, tenho a certeza, todos nós estávamos em comunhão com milhares de almas que por ali passaram ao longo de séculos. Todos nós, interiormente, estávamos sentindo algo muito especial, que tudo se consubstanciou nuns sorrisos de cansaço e alegria que se misturaram numas palavras de circunstância, singelas e sentidas que me brotaram da alma.
Nenhum de nós foi proclamado rei, chegámos todos ao mesmo tempo, nenhum de nós se quis adiantar, o companheirismo que se manifestou ao longo de todo o caminho teve ali a sua expressão final, que gravámos numa das poucas fotos desse dia solicitada a um passante num “portunhol” que já todos nos atrevíamos a palrar.
A luz escasseava mas era ainda suficiente para ver as agulhas da catedral apontadas ao céu, esgazeadas numa neblina que as dissolvia a as tornava irreais.
Os sentimentos e as emoções são difíceis de descrever. Para trás ficaram dificuldades, as alegrias, o calor, o frio e ficou a grandeza do caminho que penso ter percorrido muito depressa.
BUEN CAMIÑO!