sábado, 26 de setembro de 2009

Prozac

Agora, que o caminho francês pertence ao passado, é necessário continuar alimentar este devorador de ideias, sempre insatisfeito, sempre a querer mais. Talvez seja sensato fechá-lo. Vou pensar nisso! Apetece-me compará-lo ao consumismo desenfreado deste nosso tempo, a essa insatisfação sem limites que tende para o infinito, a todos nos consome e nos mergulha na angústia de não ter, de não conseguir…

domingo, 20 de setembro de 2009

Chegada

Agora, o caminho é urbano. Faltam apenas dois quilómetros, se tanto, que percorri liberto das dores musculares e do desconforto geral, tudo desapareceu, tudo parece ter voltado ao princípio, até a imperecível chuva deixou de me fustigar a cara e passou a bailar em frente aos cones de luz que os candeeiros da iluminação urbanos, já acesos, jorravam em direcção aos passeios.
Descemos o monte. Desmontámos para vencer as escadas que descem rente a uma das saídas, onde os carros passam acelerados e deixam para trás uma nuvem de água aspergida pelas rodas. Montámos e, de repente, a terra batida deixa de existir e dá lugar ao cimento, ao asfalto, de repente, as formas irregulares dos bosques, do caminho, transformam-se em simetrias, em ângulos rectos, em perfis perfeitamente planos e verticais. Uma ou outra pessoa passava rente aos beirais, a proteger-se, abstraída de tudo, e nós, ufanos por dentro, enlameados por fora, seguíamos as vieiras de bronze incrustadas no passeio, admirando as alindadas e iluminadas montras de vaidades que convidavam a parar, mas nós, simplesmente desprezávamos.
Entrámos nas ruelas graníticas, as faces abrem-se, uma ou outra pessoa atravessa a rua a correr e obriga a uma manobra mais apertada para evitar o choque. A última esquina, e praça Obradoiro (que foi estaleiro para construir a Sé), surge, também ela deserta. Desmontámos mesmo no centro. Olhámos em redor, não havia qualquer dúvida, estávamos no mítico campus stellae, os holofotes iluminavam toda a fachada da Catedral e adquiria, também por isso, verdadeira dimensão de estrela. Por ali vagueava o espírito de S. Tiago, de Pelayo, de Almansor, de Herodes, de S. Bento, dos construtores do caminho. Eu vi-os. Juro! Vi-os no magnífico pórtico da glória. Vi-os no tímpano central, no inigualável mainel da árvore de Jessé. Vi-os lá no alto das torres laterais da fachada. Vi-os…
Um novo sentimento de satisfação percorre as nossas mentes e, logo, uma nova corrente de companheirismo ata-nos num longo e apertado abraço. Com um sorriso de incredulidade estampado na cara, durante longos minutos por ali ficámos, sem nada fazer, a saborear aquele sentido de realização, abstraídos, vagueando o olhar pela praça. Não direi que fosse inconsciente, mas pelo menos era um pouco irracional, e só depois de o corpo começar arrefecer, e uns arrepios nos percorrerem de alto abaixo, tomámos consciência que era necessário procurar guarida.
Não cumprimos a tradição de colocar a mão direita no mainel interior à entrada na catedral, não demos as devidas turrinhas no Santo dos Croques, não demos o abraço ao Santo, assim como não vimos a Igreja de S. Domingos de La Calzada, não subimos ao castelo de Clavijo, não nos abismámos com a majestosa igreja românica de Santa Maria A Branca em Vilalcázar de Sirga, não nos pasmámos com a Igreja Fortaleza de S. Nicolau em Portomarin, não …

ATÉ SEMPRE!

terça-feira, 15 de setembro de 2009

domingo, 13 de setembro de 2009

ETAPA - 9 (Quasi)

O objectivo final estava próximo, todos sentíamos isso, era necessário saborear os últimos recantos, as últimas dobras do caminho, os magníficos monumentos que continuavam a surgir pela frente, os cerrados bosques como aqueles que acobertam o caminho depois de Melide, até as pequenas lápides que assinalam o local da morte de alguns peregrinos se tornava imperioso admirar, mas a chuva continuava a cair, de todas as formas e feitios e empurrava-nos para a frente, incentivava-nos a chegar naquele dia e, finalmente, saborear o nosso éden, o nosso lugar perfeito: um banho bem quente e lençóis brancos esticados.
E fomos pedalando, pedalando, conscientes que por maiores que sejam as tempestades, por mais pesadas que sejam as dificuldades, é seguindo em frente que se consegue lá chegar. E, pouco a pouco, conscientes de que estávamos no caminho certo, fomos vencendo os lombelos enlameados, as dores musculares, o desconforto geral à medida que íamos contando os quilómetros que faltavam. A ânsia de tal contagem decrescente era tanta que, por vezes, quando passávamos um marco indicador do caminho sem nos apercebermos, ficávamos descrentes se faltariam 20 ou 21, 18 ou 19. Parece ridículo pensar que depois de fazer oitocentos, mais ou menos um não terá significado, mas naquelas condições tinha, e tanto tinha, e não era só para mim, que nos últimos 15 km, as aldeias que se sucederam foram tantas (Ras, Breas, Santa Irene [mártir portuguesa], Rúa, Pedrouzo, San Antón, Amenal, Cimadevilla, San Paio), que ficámos com a impressão que o caminho andava às voltas e não seguia em linha recta. A última dessa sucessão de aldeias é Labacolla. Ao passar sobre a ponte, troçámos, fizemos dichotes com o banho que devíamos tomar, tal como faziam os antigos peregrinos, antes de se apresentarem ao santo, mas nenhum de nós se atreveu a desmontar da bicicleta.
Depois desse desfilar de pequenas aldeias surge o simbólico Monte del Gozo, subimos para cumprir a tradição e abraçámo-nos, instintivamente, de contentamento, de vitória, de fé… Todos nós estávamos emocionados, vi-o no semblante dos meus companheiros, havia um brilho muito especial nos olhos e uma profundidade estranha no vínculo das rugas de expressão de todos eles. Vi bem. Tenho a certeza que, intimamente, todos nós cantámos ULTREIA. Nenhum de nós tem o carácter muito expansivo e, talvez por isso, esses sentimentos não tiveram a correspondente expressão exterior, não houve grandes manifestações exteriores de júbilo mas, tenho a certeza, todos nós estávamos em comunhão com milhares de almas que por ali passaram ao longo de séculos. Todos nós, interiormente, estávamos sentindo algo muito especial, que tudo se consubstanciou nuns sorrisos de cansaço e alegria que se misturaram numas palavras de circunstância, singelas e sentidas que me brotaram da alma.
Nenhum de nós foi proclamado rei, chegámos todos ao mesmo tempo, nenhum de nós se quis adiantar, o companheirismo que se manifestou ao longo de todo o caminho teve ali a sua expressão final, que gravámos numa das poucas fotos desse dia solicitada a um passante num “portunhol” que já todos nos atrevíamos a palrar.
A luz escasseava mas era ainda suficiente para ver as agulhas da catedral apontadas ao céu, esgazeadas numa neblina que as dissolvia a as tornava irreais.
Os sentimentos e as emoções são difíceis de descrever. Para trás ficaram dificuldades, as alegrias, o calor, o frio e ficou a grandeza do caminho que penso ter percorrido muito depressa.

BUEN CAMIÑO!

domingo, 6 de setembro de 2009

ETAPA - 9 (Parte 2)



Acordámos, vestimos a desconfortável roupa húmida, e aconchegámos o estômago também com uns chocolates que a simpática peregrina checa fez questão de deixar em cima da mesa, como forma de agradecer o jantar que partilhámos com ela na tarde anterior.
O centro histórico de Sarria mantém um ar medieval que se completava com a chusma de peregrinos que, a pé, desgrenhados e ainda ensonados subiam a rua principal àquela hora da manhã. O dia nascera cinzento. O caminho, logo que se deixa cidade, embrenha-se em bosques de carvalhos, pinhos, uma vegetação luxuriante que nos isola, que nos faz regressar ao nosso interior, às nossas origens, e é quebrado, de quando em vez, pelas dezenas de aldeias que vão desfilando, isoladas, também elas perdidas no tempo.
O primeiro grande burgo a surgir no caminho é Portomarín, onde não parámos. A ânsia de chegar era muita, o cansaço, sei agora, não tem olhos para as coisas da cultura e muito menos para desvios do caminho, e, mais uma vez, ficou por contemplar a Igreja Fortaleza de S. Nicolau, Séc XII, transferida pedra por pedra para o alto do monte. Metemos pela actual ponte dos peregrinos, já que a antiga se encontra submersa pela água da barragem de Belesar, que nos desvia para a esquerda, e nos embrenha, mais uma vez, em sendas, veredas, córregos, atalhos, canados, corredoiras, tudo laços que atam as dezenas de aldeias que se vão sucedendo.
De todas essas aldeias ficou-me na memória Ligonde e Palas de Rei, onde tive o meu único furo, que remendei debaixo de chuva intensa, já que nas proximidades não havia qualquer abrigo. Em Palas de Rei vi, ao longe, o Castelo de Pambre, envolto em lendas e mistérios, em Ligonde mais uma vez, a minha memória permeável a lendas e encantamentos de outros tempos, associou a toponímica a Lug, deus Celta, padroeiro dos engenhosos, e logo errou pelas labirínticas lendas desses povos que, provavelmente, terão sido os verdadeiros precursores do caminho.



BUEN CAMIÑO!

quarta-feira, 2 de setembro de 2009