+ POESIA #35
Há 2 dias
Outrora os meus domínios literários estendiam-se por montes e vales. Neles via refletido o Sol, voava acima deles, deixava-me enlevar pelo verde intenso, pelo arvoredo, pelas fontes e ribeiros.
Confesso que tenho por hábito, quando caminho sózinho, sentir quem passa. Ver para lá da pele bem tratada das figuras femininas, dos olhares sensuais de namorados, ir além da T-shirt preta do jovem que se cruza comigo, compreender as rugas do idoso que vejo no comboio. Confesso que procuro ver outras camadas, outras cores, outros sentires que não o meu, e que sei estar em desuso. Faço jogos com vidas quotidianas, coloco-as em paisagens que só existem em mim, faço dos outros canais de irrigação deste meu inverno árido e rude. Consigo facilmente pressentir amores, ver descrenças, conveniências sociais, felicidades irritantes...
Quanto mais me contemplo mais primário me sinto. Quanto mais me isolo, quanto mais olho para dentro mais este pedregulho imanente se revela. Olho-me ao espelho vezes sem conta, assusto-me com a lama que me cobre a face, com a máscara que esconde a verdadeira expressão daquilo que sinto.
Quem não carrega a morte? Todos! Não passamos de mortos-vivos que, mascarados pelas horas que nos absorvem, se infiltram em nós, nos despojam dessa deusa omnipresente. Olhamos para o lado, disfarçamos, vestimos de cor e não de preto, alindamo-nos, dançamos, mas todos estamos potencialmente mortos, todos somos elementos virais infectados por uma gangrena física que nos decompõe permanentemente.
Hoje desci da montanha e venho encontrar-me num vale ameno, verdejante, inexistente. Sem querer deixo-me escorregar em mim, bato à porta deste hóspede austero, passo pelas dobras do coração e deixo fluir o sangue numa torrente calma, de sentires primaveris. As pupilas dilatam-se-me e as cores capto-as em formas de sons, os sons transformam-se em pétalas musicais aveludadas. Pressiono as teclas e emergem palavras de paladares embaladores e suaves que tacteio ao delével. Nas melodiosas ondas musicais, que agora ouço, evolam-se licorosos vapores que as narinas não captam e as palavras não exprimem, por mais que tente e as repise.
- Desvendas-me ou devoro-te?
Finco as mãos nas têmporas, aperto, esmago este sentir que me mantém morto. Procuro-me, vou-me mas não me deixo ir nesta roda zodíacal onde me agacho. Não sei quem sou, mas sei que nada se repete. Não sei quem sou, mas sei que já não sou aquilo que fui ontem, sei que amanhã não serei quem sou hoje e isso basta-me. Basta-me para continuar esta busca perpétua, basta-me para me decidir, para me deixar fluir nesta ilusão de sentimentos e emoções que se enredam num círculo de muitos tempos, de muitas dimensões, que me envolvem e onde conscientemente me envolvo.
As alucinações dos últimos tempos continuam.É como se vivesse num filme de Fellinni, medonho e incompreensível. Sinto-me vegetar num sistema de tensões internas empedernidas e invisíveis. Sinto-me como se vivesse na pré-história de mim, habito em cavernas, faço chispas com pederneira, acendo fogachos com as quais afuguento as feras que me corroem. Não dormem, para elas não há dia nem noite, habitam-me, consomem-me continuamente e nada as espanta. São reais, não ilusórias. Posso tocá-las. São mais tangíveis que a realidade.