domingo, 29 de abril de 2012

Novamente o "Deus das Moscas"


- Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue!
A turbamulta dos rapazes continuava a dançar em ritmo alucinatório em torno do seu deus. Ele, o deus das moscas, continuava especado no topo da vara que o sustinha. O sangue abençoado, incapaz de vencer a gravidade, escorria em pingos constantes, onde alguns dos rapazes molhavam os dedos e desenhavam pinturas guerreiras na própria face. O movimento das asas do mosquedo brilhava ao sol rasante e criava a ilusão de fadas, de duendes, figuras de animais fantásticos que habitavam em todos eles.
Caíram por terra. Juntaram as mãos. Um grande clarão penetrou nas suas mentes fê-los estremecer. Oraram! Cantaram uma litania uníssona à desesperança, interpretaram na perfeição a beleza da ruína e a perversão da inocência. Glorificaram a uma só voz a náusea do absurdo, o monturo da indiferença, a crueldade e a doçura das fadas e dos duendes.
Sim! Nas fadas também há esse simbolismo dualístico, tão comum na existência humana. Ora nos transportam para a brandura da juventude, ora se transformam em pedras esquinadas que nos arranham e nos ferem constantemente.
O tempo parou! A floresta envolvente trasnformou-se numa enorme catedral gótica. Os raios solares penetravam no folhedo e refractavam-se na atmosfera húmida, a semelhar vitrais de oração à frieza. Um odor a incenso vindo do mar penetrou-lhes nas narinas e, de repente, como se o manipanso tivesse acordado, foram aspergidos pelo hissope de uma onda mais forte que os retirou daquele enlevo malfazejo.

sábado, 28 de abril de 2012

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Ir mais fundo na dor

Ir mais fundo na dor é conseguir chegar ao abismo das coisas. É sentir-se vazio depois de ter lido uma pilha de livros, sentar-se em cima dela e esperar que este, este que agora devoro, me traga as respostas que necessito, me alivie das inquietudes que me dominam. Ir mais fundo na dor é tentar conjugar a inteligência com a sensibilidade e não conseguir descrever os contornos da alma humana. Ir mais fundo na dor é cortar os pulsos e esperar que a vida, que amo, se escoe até que a morbidez da existência desapareça. Ir mais fundo na dor é monitorizar os dias, contá-los, assinalá-los e deixar-se levar até à exaustão com os tormentos do pensamento.
Ir mais fundo na dor...

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Abatimentos

Hoje, falo daqueles abatimentos do sentir, de desolações, humilhações, peças de um puzzle que nunca se encaixam na estrutura da alma, por mais que tentemos, e nunca se libertam de nós, nos perseguem como sombras. São peças dolorosoas, incompreendidas que, em boa verdade, nunca se adaptam a nós, nos doem constantemente, espinhos permanentemente espetado nas sensíveis meninges da alma. Considero-as instrutivas. Ajudam-me a entrar dentro de mim a conhecer as minhas capacidades, a ultrapassar-me, tantas vezes. Há nessa dor fantasma uma aquisição de mim, um cansaço de tudo mas desejado.
É nesse estado que lentamente capto silêncios de mágoa, lágrimas nunca choradas, é nessa espiral de inconsciência que me revelo. É aí, no fundo desse poço, que mais facilmente me encontro. Já me acostumei a ela, a essa dor da alma, procuro-a sem, em boa verdade, a procurar, deixo-me levar pelos imagens sombrias que perduram em mim desde sempre, às vezes arquétipos de nós, e, assim, se me revela o terramoto que sou.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Chuva de letras

Esta garatuja de mim, hoje, surge-me como uma chuva de letras. Começa por se desenhar como uma nuvem lá ao fundo, normalmente uma cor negra, difusa, multiforme. O vento sempre de caras para mim empurra-a e ela vai-se adensando, pouco a pouco. Chegam-me cheiros, cores, vestígios de solidão, sentimentos, evocações, memórias e, finalmente, descarrega. Só quando está muito próxima da consciência adquire forma. Só aí se liberta do peso das gotas, já densas, que ao longo do caminho se foram agrupando por afinidade aleatória, pelo menos assim o considero. Quando descarrega acontece tempestuosamente, quase sempre de forma diluviana. Palavra puxa palavra, ideia puxa ideia, tudo se condensa, o silêncio torna-se mais profundo, os tiques, que já conheço, intensificam-se, tudo se atrai pela força gravitacional e, por fim, produzem-se imagens repentinas, como um relâmpago (algumas são férteis, reconheço) e que acabo por captar, com dificuldade, com esta tinta inútil.

domingo, 22 de abril de 2012

O fabuloso destino de Amélie

Caminhos

Outrora os meus domínios literários estendiam-se por montes e vales. Neles via refletido o Sol, voava acima deles, deixava-me enlevar pelo verde intenso, pelo arvoredo, pelas fontes e ribeiros.
Hoje, confesso, que os meus domínios são mais estreitos, não vão além de quatro paredes, mas paradoxalemente mais largos. Hoje, seduzem-me os raciocínios ilógicos e enganosos que consigo ver através da mente. Cada vez mais sinto necessidade de me afastar do real, de viver a minha vida interior intensamente e encontrar nela inspiração para continuar.
Os perigos aumentam, sei bem que sim, há pedregulhos que caiem do céu, portas que se arrombam, descubro sombras que me perseguem diariamente, princípios que se desmoronam, mas é por aí que vou. Não quero mais classificar o mundo, o mundo é o que é, prefiro passear-me no meu caótico e desordenado subconsciente, enterrar-me na lama do inconsciente, sujeitar-me a tempestades existênciais, tropeçar, cair, levantar-me...
Prefiro viver neste meu bairro de lata que construo e desconstruo continuamente;
Prefiro o exílio do sentir à liberdade do ver;
Prefiro o silêncio de mim aos diálogos silenciosos.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Eu e os outros

Confesso que tenho por hábito, quando caminho sózinho, sentir quem passa. Ver para lá da pele bem tratada das figuras femininas, dos olhares sensuais de namorados, ir além da T-shirt preta do jovem que se cruza comigo, compreender as rugas do idoso que vejo no comboio. Confesso que procuro ver outras camadas, outras cores, outros sentires que não o meu, e que sei estar em desuso. Faço jogos com vidas quotidianas, coloco-as em paisagens que só existem em mim, faço dos outros canais de irrigação deste meu inverno árido e rude. Consigo facilmente pressentir amores, ver descrenças, conveniências sociais, felicidades irritantes...
O mundo é aquilo que sou, vejo-o e vejo os outros através de mim, projeto-me neles. Se isto é verdadeiro o inverso também o é. Eu sou uma visão do “outro”. Conhecem-me verdadeiramente? Não! Querem conhecer-me verdadeiramente? Não! Aguentarão com tal imagem? Não! E ainda bem! Só desta forma nos suportamos. Suportamo-nos porque não nos conhecemos, e não sou apenas eu a dizê-lo.Vemos apenas a camada superficial do “outro”, a primeira máscara que nos cobre. Eu sei que não vou além das simpatias ou antipatias que possa despertar. Eu sei que não passo da imagem de um corpo e uma face, elementos básicos desta realidade. Perante os outros, sei que não passo de uma personalidade vaga e irreal, provavelmente incómoda.
Há um paradoxo em tudo isto. Quando procuro conhecer-me a mim mesmo, para querer conhecer os outros, não consigo ver-me. E não falo dessa incapacidade humana de não ver a sua propria cara, falo desta minha inabilidade de não saber quem sou. Ora me vejo, ora me não vejo, ora retiro, ora coloco a máscara, sempre a acreditar que aquela figura que vejo ao espelho é a minha verdade. Vejo-me? A dúvida instala-se-me! Estudo-me. Detecto ironia nos lábios, ilusões no olhar, sou povoado por um mar de sentimentos, vagueio entre deuses e demónios que existem em mim, que existem em nós, mas sei que não passo de uma impressão geral de um rascunho inacabado.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Até onde...

Quanto mais me contemplo mais primário me sinto. Quanto mais me isolo, quanto mais olho para dentro mais este pedregulho imanente se revela. Olho-me ao espelho vezes sem conta, assusto-me com a lama que me cobre a face, com a máscara que esconde a verdadeira expressão daquilo que sinto.
Abro a janela da alma e nunca consigo ver estrelas a brilhar, raramente o azul do Céu é um azul asseado e transparente, raramente bato palmas aos espetáculos televisivos, raramente o Sol de reflete em mim.
Esta saudade de um outro futuro revela-me sempre um mundo desasseado, trajado de vestes lavadas-sujas, oco, sossegado e inquestionável. Esta minha desolação revela-me cada vez mais a minha inexistência, a minha inutilidade.
Vem-me à memória o Voando Sobre um Ninho de Cucos e também eu me vejo a andar em círculos concêntricos em torno de um abismo desconhecido para matar as horas de tédio. Também eu olho permanentemente para o chão, como se procurasse algo de concreto, no entanto, não sei o que procuro.
Arrepio-me com o frio que sinto. Sinto que este sentir é cada vez mais um refúgio de uma desolação ébria que habita em mim.
Questiono-me: até onde conseguimos descer na nossa consciência?

domingo, 15 de abril de 2012

Portishead

O que nunca fui

Há em mim um apelo de regressar a um passado de quem nunca fui. Desconheço a palavra certa para o caraterizar, não sei se lhe posso chamar saudade, não sei se o posso adjetivar de insatisfação, não sei... É uma espécie de aperto doentio, simultanemante resignante, que me arrasta e me imobiliza, que me induz a uma intranquilidade circular tranquila. Vai e vem, e quando vem entristece-me. É como se me visse mais agora, é como se me dissesse coisas a mim próprio que nunca proferi nem questionei.
O que é isto? Talvez a insanidade da vida, talvez, cansaço antecipado que não sinto, talvez, o esgotamento do tempo e de mim...

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Carregando a morte

Quem não carrega a morte? Todos! Não passamos de mortos-vivos que, mascarados pelas horas que nos absorvem, se infiltram em nós, nos despojam dessa deusa omnipresente. Olhamos para o lado, disfarçamos, vestimos de cor e não de preto, alindamo-nos, dançamos, mas todos estamos potencialmente mortos, todos somos elementos virais infectados por uma gangrena física que nos decompõe permanentemente.
Não passamos de hospedeiros dessa necrosante benção leal que nos cobre, a semelhar um véu transparente, e nos ata a um minúsculo espaço temporal que o tempo apagará.
Que diferença há entre as caveiras carregadas e os mortos-vivos? Nenhuma! Não tardará que outros nos carreguem e que, também eles, transportem a nossa caveira em sacos inexistentes de uma pequena viagem ilusória. É uma questão de tempo, não há variáveis que possamos alterar.
É nesta realidade que tudo se passa: esta é a breve clareira do desconhecimento repleta de cores e sons que nos ofuscam. Este é o cenário, nós, não passamos de atores que representamos uma híbrida trágico-comédia, sempre com um final feliz. Tudo se passa nesta incógnita floresta temporal, doentia, que não aceitamos existir.
Não vamos além das emoções que sentimos, não vamos além da indiferença e do amor que nutrimos uns pelos outros.
Todos estamos infectados!

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Alquimia do sono

Hoje desci da montanha e venho encontrar-me num vale ameno, verdejante, inexistente. Sem querer deixo-me escorregar em mim, bato à porta deste hóspede austero, passo pelas dobras do coração e deixo fluir o sangue numa torrente calma, de sentires primaveris. As pupilas dilatam-se-me e as cores capto-as em formas de sons, os sons transformam-se em pétalas musicais aveludadas. Pressiono as teclas e emergem palavras de paladares embaladores e suaves que tacteio ao delével. Nas melodiosas ondas musicais, que agora ouço, evolam-se licorosos vapores que as narinas não captam e as palavras não exprimem, por mais que tente e as repise.
Hoje desci à alquimia do sono, estalajadeiro de sonhos, ao lugar dos luares trigueiros, das cordas de cravos beliscadas, ondas vibratórias de pianos, deléveis cócegas cerebrais, arrepiantes, de penas de ave, devaneio de sensações e emoções que só o sonho admite. Neste almofariz anárquico de mim mesmo, tudo misturo. Nele, nada se perde, tudo se transforma.
Hoje desci ao vale dos sonhos, força humana capaz de iludir os sentidos.

Gustavo Santaolalla

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O enigma da esfinge

- Desvendas-me ou devoro-te?
E não se desvendou. Foi devorado. Incapaz de se desconstruir, incapaz de peregrinar no seu interior, de desvendar as suas quimeras, foi devoradao pela esfinge. Agora, jaz aos seus pés, sem nunca conseguir misturar a infância, o tempo, sem nunca ter sido sobressaltado consigo mesmo, pelos seus tédios, sem nunca se ter devorado a ele próprio.
Morreu numa contemplação permanente das vidas alheias, na monotonia de si mesmo, na constância das horas sem insistências metafísicas, morreu sem nunca se ver ao espelho em esgares de libertação. Viveu numa felicidade indefinida, uma felicidade de abstenção, viveu na vã glória de se deixar arrastar pelo destino.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Movimento perpétuo da vida

Finco as mãos nas têmporas, aperto, esmago este sentir que me mantém morto. Procuro-me, vou-me mas não me deixo ir nesta roda zodíacal onde me agacho. Não sei quem sou, mas sei que nada se repete. Não sei quem sou, mas sei que já não sou aquilo que fui ontem, sei que amanhã não serei quem sou hoje e isso basta-me. Basta-me para continuar esta busca perpétua, basta-me para me decidir, para me deixar fluir nesta ilusão de sentimentos e emoções que se enredam num círculo de muitos tempos, de muitas dimensões, que me envolvem e onde conscientemente me envolvo.
Não me decidem, decido-me. Não espero nada da vida, mas agarro-
-a, agarro-me a este quinhão de sentires que me deram, e nada mais quero.
Não me abstenho de agir, é-me contranatura, eu sei, mas entro nela com outras formas que também brotam de mim, entro nela com outras ilusões, às vezes bizarras, absurdas, às vezes medíocres, mas organicamente exteriorizo-me, influencio e influecio-me, impeço o suicídio.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Alucinações

As alucinações dos últimos tempos continuam.É como se vivesse num filme de Fellinni, medonho e incompreensível. Sinto-me vegetar num sistema de tensões internas empedernidas e invisíveis. Sinto-me como se vivesse na pré-história de mim, habito em cavernas, faço chispas com pederneira, acendo fogachos com as quais afuguento as feras que me corroem. Não dormem, para elas não há dia nem noite, habitam-me, consomem-me continuamente e nada as espanta. São reais, não ilusórias. Posso tocá-las. São mais tangíveis que a realidade.
Sinto-as como se fossem conceitos venerados que todos os dias se desconstroem, animais sagrados que me pastam, que me alimentam, que me reduzem a uma nota de rodapé.
Não quero entardecer na pequenez! Não quero sossego, quero dessossego, não quero despojar-me da vida, quero senti-la. Não me interessa a substância das coisas, quero encontrar o seu vazio.
Não quero ter razão, quero elouquecer.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Alice in Chains

O dia: pela manhã

O dia, pela manhã, tem sempre um outro encanto. É como se o sono me restaurasse a vontade de continuar neste caminho que não pedi. Por breves momentos sinto satisfação na descoberta desta viagem paralela da qual não consigo ausentar-me. Sabe-me bem imaginar o que pode vir a acontecer, as descobertas que farei em mim e nos outros. Por momentos fico liberto da organização rigorista, quase miliar, que este meu sentir me impõe. Gosto de pensar que durante alguma horas posso ser eu, e só eu. Sabe-me bem saber que vou poder caminhar sozinho, mesmo que seja por breves horas, não pertencer, não aceitar, não estar, não racionalizar, renunciar... abandonar-me aos meus sonhos, penetrar numa consciência de outra ordem que gosto de cultivar.
Pela manhã, sou alegre;
Pela manhã, não tenho direitos nem deveres;
Pela manhã, nasce-me a vontade de ser;
Pela manhã, há futuro em mim.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Provocação

Hoje, e sempre, estou à procura de mim. Provoco-me. Rasgo-me, com as facas sem gume que possuo. Hoje enfrento-me com uma velha questão. Enfrento-me com a razão daquilo que sou e com a razão da minha existência. Dissolvo-me, portanto, numa solução amniótica daquilo que sinto e daquilo que me dão como verdade. Neste caldo hipertónico considero-me mera substância solúvel onde cabem todas as variações humanas.
É exatamente aqui que me vasculho internamente, e é aqui que dou como certo estar visível porque estou ligado a outros. Quando me desligo desta matriz, deste intrincado sistema de conexões, não existo, acinzento-me, sou apenas eu, o meu “eu” e as incoerências de que é feito.
Conhecendo-me assim, acreditando nesta verdade conectiva, permanentemente ligado a estes sistemas incertos, concluo que sou apenas um produto sensitivo de tudo isto. Não passo de mais um derivado errático de toda esta miscelânea.
Quem se atreve a julgar-me?