Confesso que tenho por hábito, quando caminho sózinho, sentir quem passa. Ver para lá da pele bem tratada das figuras femininas, dos olhares sensuais de namorados, ir além da T-shirt preta do jovem que se cruza comigo, compreender as rugas do idoso que vejo no comboio. Confesso que procuro ver outras camadas, outras cores, outros sentires que não o meu, e que sei estar em desuso. Faço jogos com vidas quotidianas, coloco-as em paisagens que só existem em mim, faço dos outros canais de irrigação deste meu inverno árido e rude. Consigo facilmente pressentir amores, ver descrenças, conveniências sociais, felicidades irritantes...
O mundo é aquilo que sou, vejo-o e vejo os outros através de mim, projeto-me neles. Se isto é verdadeiro o inverso também o é. Eu sou uma visão do “outro”. Conhecem-me verdadeiramente? Não! Querem conhecer-me verdadeiramente? Não! Aguentarão com tal imagem? Não! E ainda bem! Só desta forma nos suportamos. Suportamo-nos porque não nos conhecemos, e não sou apenas eu a dizê-lo.Vemos apenas a camada superficial do “outro”, a primeira máscara que nos cobre. Eu sei que não vou além das simpatias ou antipatias que possa despertar. Eu sei que não passo da imagem de um corpo e uma face, elementos básicos desta realidade. Perante os outros, sei que não passo de uma personalidade vaga e irreal, provavelmente incómoda.
Há um paradoxo em tudo isto. Quando procuro conhecer-me a mim mesmo, para querer conhecer os outros, não consigo ver-me. E não falo dessa incapacidade humana de não ver a sua propria cara, falo desta minha inabilidade de não saber quem sou. Ora me vejo, ora me não vejo, ora retiro, ora coloco a máscara, sempre a acreditar que aquela figura que vejo ao espelho é a minha verdade. Vejo-me? A dúvida instala-se-me! Estudo-me. Detecto ironia nos lábios, ilusões no olhar, sou povoado por um mar de sentimentos, vagueio entre deuses e demónios que existem em mim, que existem em nós, mas sei que não passo de uma impressão geral de um rascunho inacabado.