- Que a beleza a decore – dizia o mestre ao aluno quando este, na sua inocência, se propunha elaborar a obra de suprema beleza, aquela que o libertaria das garras da morte. E o aprendiz, agarrado ao plano horizontal que o papel definia na superfície da mesa, apenas com comprimento e largura, fazia esboços e mais esboços, procurava com toda a sua força intelectual e física convencer o mestre da inevitabilidade da sua razão. O mestre olhava-o com admiração, seguia-lhe o pensamento, acenava nas entoações de voz, encrespava a testa quando não o entendia ou lhe parecia que as palavras eram pobres para explicar a beleza de tal conceito. Não o desiludiria. Nunca lhe diria, como a ele lhe disseram que “...a obra perfeita é aquela que não se acaba”. Deixá-lo-ia sonhar, deixá- -lo-ia construir-se com as pedras da utopia.
Dou como assumido e verdadeiro que a “minha liberdade termina quando começa a dos outros”. Ou então, ainda de uma forma mais exacta, que o “cumprimento das leis é a máxima liberdade”, e é nessas baias que procuro marcar a minha existência mundana. Mas há uma outra liberdade que me interessa mais: a liberdade de pensamento. Aquela liberdade que nos leva ao nosso cerne interior, ao âmago da nossa alma, ao núcleo da nossa humanidade e nos permite ir mais além, ver mais claro, decidir melhor, dissipar o nevoeiro que todos os dias se forma à nossa volta, destruir as grilhetas da ignorância que nos agarram a esta realidade material. Tomara que toda a Humanidade possuísse essa arma de destruição e libertação. É nessa centelha de vida que habita em cada um de nós que me coloco. É nesse lampejo, que não se define em palavras, mas se calhar na arte, que nascem todas as outras liberdades, estejam elas em que plano estiverem. É desse clarão químico, alquímico, divino, dependerá posição que cada um de nós adquire, que falo. Sei, simplesmente, que é a ele que recorro, é nele que deposito os meus sonhos, sei que é dele que brota esta manipulação de palavras que me parece adquirirem nexo quando lidas em conjunto.
Tomo nota. É uma verdade agora descoberta, exactamente agora: quanto mais desço em mim, menos relevância adquire o mundo externo. Esta é a verdade dualística que me acompanha desde sempre, e que, diariamente me obriga a decidir. Nesta bifurcação perene, já não sei se hei-de voltar a entrar no nevoeiro da minha antemanhã distante, e que todos os dias se revela um pouco, ou se, por outro lado, devo seguir a esperança no futuro, onde não vislumbro uma linha de rumo, onde apenas vejo barcaças a navegar à vista, onde o valor das coisas já não é o que aprendi. Não me entendo, não entendo o mundo. Cruzo os braços, regresso a mim.
Deixa-me trazer-te as canções da floresta: para te sentires muito melhor, mais do que podes saber Cheio de Poeira, dos pés à cabeça. Mostro-te como o jardim cresce. Segure firme, vê como vai. Junta-te ao coro, se puderes: Ele vai fazer de ti um homem honesto. Deixa-me trazer-te o amor do campo: Papoilas vermelhas e rosas cheias de chuva de verão. Para curar a ferida e a dor que te ameaça novamente Enquanto se arrasta a travessa em todos os amantes A Celebração longo da vida é aqui. Eu vou brindar a todos num elogio fraco. Deixa-me trazer-te todas as coisas refinadas: Canções de luto servidas em cerveja resfrescante. Cumprimentos por encontrares o colega granizo! Eu sou o vento para encher a tua vela. Eu sou a cruz para fixar o seu prego: Um cantor desses tempos imutáveis. Com prosa de cozinha e rimas de sarjeta. Canções da floresta fazem sentir-te muito melhor.
Desço a rua silenciosa, húmida, as casas comprimidas vão-se sucedendo, as varandas opostas quase se tocam. Imediatamente brota em mim uma corrente de impressões, leves, tão leves que só tomo consciência delas mais tarde, depois de sair do aperto da rua e entrar na largueza da praça. Entretanto, e sem dar por ela, vivi. Embevecido pelas formas, pelos ângulos, pelas gentes que nela circulam, pelos rostos antigos que me falam, que me respondem e me questionam, pelas plantas, e não só, que apenas vegetam, por tudo isso sonhei vidas através de um diálogo mudo e contínuo que não me cansa.