domingo, 23 de novembro de 2008

A bicicleta

Comprou-a com os primeiros ordenados, ainda aprendiz, andaria ele nos quinze anos. Não sabia explicar de onde lhe vinha aquele gosto pelas bicicletas, mas uma coisa lhe parecia certa, era uma herança visceral, profundamente enraizada no seu ego. Mesmo com aquela idade, quando olhava para ela, achava-a bonita, equilibrada, até se notava uma certa ternura no olhar, e um pueril brilhozinho raiava dentro das duas grandes órbitas que lhe iluminavam o rosto austero. Não a via como mero objecto de transporte, era muito mais que isso, era a sua segunda companheira de vida. Trazia-a sempre impecável, pedaleira bem oleada, travões afinados, níqueis a brilhar, sem sinais de ferrugem. A placa de registo fixa no guarda-lama traseiro, também ela não mostrava sinais do tempo que ambos atravessaram, o preto do registo;
1-VLG
09-59,
continuava a contrastar com o fundo amarelo como dourados na farda de soldado. Se apanhava chuva não a arrumava sem antes a limpar devidamente. Rodas empenadas?, não havia, andava sempre a apertar e a desapertar raios, e, se sonhava que os rolamentos da roda pedaleira faziam barulhos, passava as manhãs de Domingo a montar e desmontar a limpar e a olear, normalmente depois de assistir à missa na capela da Senhora das Dores, o santo ofício, como ele lhe chamava, porque crente como era, não deixava de cumprir com as suas obrigações dominicais de cristão. Apetecia dizer; ai da mosca que ousasse pousar nela sem a sua autorização. Às vezes até falava com ela, não porque estivesse a ficar choné, e alguma monomania estivesse em fase de gestação, não!, nada disso, falava com ela como falava com o farrusco, que era o rafeiro que partilha a casa com eles, quer dizer, o quintal, que a Hermínia, a patroa, era assim que se referia à mulher, tratava de o empontar imediatamente quando lhe entrava porta dentro, passa-fora!, fora daqui, desaparece-me dos pés, dizia ao mesmo tempo que batia com eles nos ladrilhos rafados pelo uso. O sentimento que nutria por ambos era equivalente.

domingo, 16 de novembro de 2008

Resistir

NÃÃÃOOO!

Não! Alguém grite não! Que ninguém acredite. Que ninguém se vergue. Impõe-se ser revelado. A VERDADE assim o exige.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Direita e esquerda

Pedalava devagar que a estrada agora subia. Na valeta ao lado direito os maravalhos estiolados, arrastados pela enxurrante trovoada de verão de há dois dias atrás, acumulavam-se de onde em onde, formando pequenos açudes. As marcas dos pneus desenhavam-se na terra ainda húmida. Agora levava o olhar ferrado no serrilhado do limiar do alcatrão que se sucedia, meio esboroado, à canhota da cobrejante roda dianteira. A sua sombra projectava-se na estrada, ora alongava ora encorpava, rodava à velocidade da bicicleta da esquerda para a direita ao longo de todas as curvas, depois, trepava pelo talude, como que a agigantar-se, cortava os silvedos bordejantes para finalmente mais à frente adquirir uma forma asténica, alongada, ao longo de mais uma recta. De quando em vez alçava o olhar, computando a distância que faltava para chegar ao topo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Bugiadas - 4

Quando já todos maldiziam o Reimoeiro e já uma espessa nuvem escurentava as suas vidas, quando já oravam de mãos postas há longos dias pedindo perdão dos seus pecados, e não obtendo sinal divino das preces ofertadas, o desânimo começava a alastrar, como uma praga peçonhenta, inacreditável!,... abandonados pelo próprio santo, estavam capazes de o mandarem às favas, mas milagrosamente aconteceu o inesperado, eis que rebenta uma bernarda, duas… três… quatro… uma algazarra imensa atravessa as grossas paredes do roqueiro alcácer. Ouviam tudo: os trons das pedras fortemente lançadas pelas partazanas ao embaterem nas robustas portas de castanho, a assuada que parecia aumentar sempre que um pelouro era disparado e acertava no objectivo. Depois surgiram os batimentos ritmados de aríete a fazer suspeitar que a porta estava preste a ser ultrapassada. O cheiro a pez queimado entrava-lhe pelas narinas dentro. Os gritos de incentivo do Reimoeiro, a denotarem medo, sobrepunham-se ao vozeio. Era o assalto ao Castelo, eram os Bugios, a tribo vizinha que vivia em terras próximas, não sei se mais guerreira se mais agrícola, vinham em sua ajuda. De cara tapada, armados de varapaus, forquilhas, e de uma fantástica serpe, entraram rompantes e sem tardanças, libertaram os “bons”, que nestas lendas o “bem” vence sempre, e agrilhoaram os “maus”.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Bugiadas - 3

Era o solstício de Verão, o dia é longo e a noite curta. Irmãos ofertar-vos-ei grande festança como prova da minha gratidão, grasnava astuciosamente o Reimoeiro enquanto assomava à conoidal janela da sólida torre albarrã. E cumpriu. Cá fora, na almedina, o convidado poviléu cristão sentava-se ruidosamente ao longo dos toscos bancos corridos, talhados a machado, paralelamente ordenados a lembrar formação militar de infantes. Nos entremeios os linguarudos e chocarreiros bufões dançavam desvairadamente, enquanto achincalhavam indiferentemente o santo milagreiro e as gentes. Mesnadas de moscas pousadas à sombra das rudes mesas elevavam-se no ar, para logo de seguida voltarem a banquetear-se no imundo lajedo. Duas cacarejantes galinhas aloucadas ao sentirem-se perseguidas por uma criança, andrajada com longa camisa pespontada e bivaque pontiagudo na cabeça, percorriam a praça pública. Uma ninhada de pestilentos porcos indiferentes ao vozeio, fossavam incessantemente a terra húmida do canto, lá mesmo ao fundo, junto ao adarve. Um Mourisqueiro de alvo turbante a cobrir-lhe a cabeça, afagava as penas de um falcão de olhos vendados, pousado no antebraço esquerdo. A esgalgada plebe, manifestava-se ruidosamente como que a querer acalmar a senhora Fome que lhes enchia os antros estomacais pouco exigentes. Daquelas bocas nada saía de cortês, manifestava-se de forma estercorosa e rancorosa, não era gente de salamaleques: ó infiel duma figa é para hoje ou para amanhã... a tua mãe é uma rameira... ó filho de belzebu. E quando a ânsia famélica se adensava, já prestes a explodir, repentinamente, o Reimoeiro dá ordem para que se sirva a ceia. Abrenúncio!, gritaram alguns. A fartança dos tabuleiros repletos de bastimentos não passava de ossos, restos, imundícies de toda a espécie. Ainda muitos não tinham percebido o que se estava a passar já os lanceiros-reais de elmo na cabeça, pique empunhado e escudo embraçado tapavam as saídas. Os mais destemidos ainda desenharam o gesto de desnudar espada, mas imediatamente foram imobilizados e conduzidos às masmorras.


"..."

In: Fantasmas de uma Revolução

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Bugiadas - 2

Desesperado, ao tomar conhecimento do santo milagreiro João Baptista, a quem os gentios cristãos do povoado da falda da serra atribuíam poderes de curandeiro, suplicou-lhes o empréstimo da imagem e, perante o ícone, de joelhos em frente ao subido pedestal propositadamente construído para o receber, iluminado pela frouxa e mansa luz de dous lampadários, também eles muito recolhidos na sua fé, orou longas horas rogando-lhe fervorosamente a cura da filha. Milagre! Mal o astro rei se apagou nas águas do Atlântico logo a filha se alevantou do alvacento leito de estopa, irradiando vida pelos dous sóis que orbitavam a face ainda macilenta. Logo no dia seguinte pelo nascer da alva soaram trombetas, rufaram tambores e pandeiretas, e, da albacar saíram a toda a brida arautos montados em elegantes alazões e nobres bucéfalos, anunciando as festas em honra do santo milagreiro. Engalanaram as ruas, acenderam-se fachos, apresentou-se o lanceiro-mor do reino,
vieram chanceleres e ricos-homens,
senhorios e escravos minadores,
vizires e pescadores,
veio a gente da gleba e os comparsas mudéjares. O santo montado na charola, percorreu as estreitas e pútridas ruas, apinhadas de gente vergadiça que à sua passagem orava fervorosamente. Mas o fanático pagão, falso converso que até o santo enganou, tinha outras intenções. As festas não eram laudes, as festas eram engodo, ele queria era o santo, queria o santo milagreiro. Queria um físico que lhe prolongasse a vida, um alquimista que lhe desvendasse os símplices da pedra filosofal. E um santo como aquele!, esculpido em pau-santo, fácil de compor, de boa têmpera, capaz de tanta milagreira, dava bom jeito, oh! se não dava, bem podia ser senhor do mundo antes das próximas colheitas. Nunca!, urrou a cristandade. O santo é nosso! Ninguém fica com o santo! Como se atrevem, invectivava sozinho o sanhoso Reimoeiro ao ver tanta militância, como podem pôr em causa a autoridade mourisqueira. Terão que me prestar menagem, pensou para com os seus botões, quer dizer, para os seus atilhos que os botões naquela época ainda não tinham sido descobertos, terão que vergar a espinha, eu seja cão se o não fizerem.


"..."

In: Fantasmas de uma Revolução

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Bugiadas - 1

Era uma vez um rei muçulmano, o Reimoeiro, senhor do solo e sub-solo das terras de Cucamacuca. Lá do alto da serra, de uma das janelas rendilhadas do seu altaneiro alcácer, a sua única filha a quem muito amava – de elegante vestido de cassa branca e longos cabelos frisados, cingidos por um aurífero e rendilhado diadema, pousavam docemente sobre o xaile de astracã que lhe cobria os ombros –, encoberta pelas colgaduras que adornavam a janela da quadra onde dormia e coavam a luz doentia do dia, espraiava o olhar manso e húmido pelo longo vale, sua pertença. O tempo esgotava-se lentamente na clepsidra pousada sobre o escrínio tauxiado a madrepérola, e ela aliviava a dor da alma – já que para o corpo não encontrava nem anódino nem purga benfazeja capaz de a acalmar – olhava as almuinhas e as olgas verdejantes no côncavo do vale, e lá na desbanda, do lado de lá, abrigado nas fraldas da serra, enxergava o xistoso povoado afamado pela alegria dos seus habitantes de nome Superatú. Já o Reimoeiro na busca incessante da cura para as maleitas da bem-amada filha, que lhe consumiam o corpo e a alma, mandara arautos por toda a parte do reino em busca dos melhores físicos e astromantes capazes de as debelar. Mas nada! Até os áugures e nigromantes consultados predisseram desgraça.
"..."
In: Fantasmas de uma Revolução

sábado, 1 de novembro de 2008

O artolas de S.Bento

Nem cara tinha para levar uma chapada bem dada, mas andavam sempre todos emproados a mostrar abastança e seriedade no negócio, normalmente havia características no vestir que eram comuns a todos eles: dentes sujos, barba de dois dias, cabelo azeitado, casaco assertoado de quatro botões amarelos a arrelampar, asseado meote branco a condizer com a refegada e suja camisa. Adejavam ao longo do átrio rectângular como moscas varejeiras, de vez em quando pousavam debaixo da arcaria, mirando os potenciais clientes que entravam e saíam do carreirão de táxis que se formava na ruela fronteira, varandim sobranceiro à pendente praça Almeida Garrett. Os fogareiros que mais semelhavam turíbulos, esfuminhavam tudo em redor, o cheiro a castanha assada evolava-se no ar. Aos apurados ouvidos desencerados pela unha propositadamente engrandecida do dedo mindinho, limpeza sempre feito com vibrantes movimentos de grande requinte, chegavam-lhe o ritmado anúncio dos números da sorte; quem quer o 27?, do cauteleiro da esquina, misturado com os constantes pregões do mulherio bufarinheiro, desafiando os passantes, valorizando a mercancia: olha!, quentes e boas... Oh, minha querida são as últimas, compre que estão baratas – e logo de seguida protestava com uma carvalhada pelo claro, bem repenicada dirigida a alguém que se atreveu e desfazer da mercadoria – olha a filha da puta que fina está, ai não te serve,... Prantadas atrás da pequena banca desmontável, em atalaia permanente iam chocalhando as moedas no bolso do rendado avental, atiravam olhares aos movimentos denunciadores da intervenção da polícia, para elas a bófia que era termo desprezível, perscrutavam-lhe os movimentos, mediam-lhe todos os passos, porque a dita força da ordem atiçada pelos comerciantes de porta aberta, não se fazia rogada para lhe confiscar a açucarada veniaga, sempre vendável, que fazia as delícias da criançada e lustrava com sedosa meia de vidro as altas coxas das raparigas que atravessavam a rua de mini-saia. Em momentos sazonais vendiam bugiganga de ocasião, utilidades e adereços femininos: guarda-chuvas retrácteis, yo-yos luzentes, bonecas falantes, cubos mágico de Rubick, quebra-cabeças que todos queriam resolver... tudo eirado em pleno passeio, obrigava os magotes de gente que ali desembocavam a desvios forçados para não esbarrarem com ela. Era uma corrente contínua de gente anónima que subia as escadas da passagem subterrânea, apressadamente – sempre embalada pelas modinhas da vermelhusca concertina do ceguinho, que lá em baixo, não se cansava de tocar –, espessando ao ritmo do abrir e fechar do semáforo da avenida ou de um autocarro que descia a Rua das Carmelitas, e descarregava ao fundo da avenida mais uma fornada de gente.