domingo, 5 de outubro de 2008

O velho

O velho, corcovado, arrimado à bengala de freixo, de manípulo talhado, nas tardes de soalheira, pela faquinha de palaçoulo, com remate de inspiração canídea, a fazer alembrar adornos de castão, vinha procurar companhia. À soleira da porta, olhou os dois poiais, onde costumava sentar-se: ainda não havia ninguém em nenhum deles. O da tia Rabiça, um casqueiro de pinho assente nas extremidades, sobre duas pedras de cantaria, era mais passadouro e sempre se davam duas de conversa, mas o outro, o do cantinho do palheiro, era mais abrigado, e nesta época, ao fim da tarde, era sempre visitado por uns raios de sol setembristas, amarelentos, já pouco quentes, mas que sempre lhe transmitiam uma migalha do fulgor que já não tinha. Optou por esse. Os movimentos do andamento eram ancilosos, lentos, como se os pés pesassem uma arroba. As fivelas das botas de atanado, que não conseguia apertar, e que não viam um pingo de sebo há muitos meses, arrastavam-se, e os pés chocalhavam dentro delas. As calças de burel, já gastas, esfiapadas na bainha e remendadas nos joelhos, pendiam-lhe nos quadris.
A samarra, de gola de raposa sebenta pelo uso, capote para o Inverno, vinha assente sobre os ombros. Numa das chumaceiras, na da direita, alvejava um rasgão na parte superior da cava. Por vezes, sentia-a escorregar pelas costas, e, então, dava-lhe um pequeno safanão com o ombro direito, até voltar à sua posição inicial. O colete cinzento sobre a camisa sem colarinho, refegada e suja, cingia-lhe o descarnado pescoço, como se fosse um cabeção, e desenhava-lhe um bico no peito. Nas bocas dos bolsilhos do colete uma mancha de sarro brilhava.
Sentou-se. Tirou do bolso das calças um codorno de pão que rilhava com as duas longas e persistentes arnelas.

"..."

Contos dos montes ermos

1 comentário:

Tomé disse...

Um excelente, vivo e expressivo retrato psicologico de um personagem verdadeiramente universal! Um dos meus "contos" favoritos desta compilação! Tem um desfecho marcante e que faz abrir os olhos... muito bom mesmo, parabens