Esta era uma das etapas que, desde início, ansiava percorrer. Talvez não fosse só esta, talvez possa dizer o mesmo em relação à primeira, aquela em que chegamos a
Roncesvalles, à penúltima por desejar alcançar o
Cebreiro, e à antepenúltima, ou seja, esta, porque iria passar na “Cruz de Ferro”, local mítico para os peregrinos, onde é tradição deixar uma pedra que se transporta na mochila desde casa, e que também cumpri. Sinceramente, não sei qual o significado de tal tradição embora possa imaginar, talvez seja melhor assim, cada um pode dar-lhe o significado que entender.
Lá, no alto, no ermo da “Cruz de Ferro”, protegidos de uma chuva intensa pelos largos beirais da pequena capela que lhe fica sobranceira, com a vista de uma pequena cruz de ferro sobre um céu cinzento e carregado de nuvens, fixa no cimo de um poste, erguido sobre um monte de pedras, planeámos chegar a
Vilafranca del Bierzo, que não conseguimos alcançar por minha causa. As forças já eram poucas, claudiquei, acabámos aquém da meta estabelecida, mais uma vez. Dormimos no curioso albergue municipal, em
Cacabelos, 10 Km antes.
No típico albergue onde passámos a noite, refiro-me ao de
Hospital de Órbigo, apesar de pequeno era acolhedor, não faltavam óleos dependurados nas paredes alusivos a “D. Mas de Quiñones”, esculturas, referências de toda a espécie ao caminho e a tudo o que o envolve. Esse ambiente, a simpatia das pessoas, e não me canso de o dizer, acabaram por aliviar a carga dos quilómetros que todos os dias se iam acumulando nos músculos doridos.
O caminho logo à saída da aldeia surge com duas possibilidades, optámos pelo da esquerda, que segue paralelo ao traçado da N-120. O primeiro vislumbre do dia é
Astorga, vista do alto, no cruzeiro de
S. Toribio que parece ter um projéctil no topo e onde, segundo consta, o bispo da mesma cidade, abatido e injuriado, sacudiu o pó das sandálias ao abandonar a diocese. Gesto bonito, este, mais uma vez a minha ignorância se manifesta, não sei o que significa: exorcizar fantasmas, afastar pensamentos, isentar-se de responsabilidades, indiferença por aqueles a quem dedicámos atenção e não nos ouviram, ou será antes um acto de perdoar, de caminhar, de continuar a andar sacudindo, simplesmente, de quando em vez, o pó das sandálias que nos macera os pés, como que a dizer: eu tenho razão, há que dar tempo ao tempo, continua a caminhar, deixa as árvores frutificar, deixa os rios correr.
Nela, em
Astorga, capital da
Maragatería, entronca a “Caminho da Prata.
Asturica Augusta é também um poço de história e cultura. Apesar da sua riqueza cultural, não ficámos muito tempo. Passeámos um pouco nas suas praças, provámos a beleza exterior da
Catedral de Santa Maria, olhámos as ruas da antiga judiaria, saboreamos um
café com lette e um bolo tradicional, que não fixei o nome, e fiquei com vontade de voltar para provar o apaladado maragato que, por aquilo que percebi, será algo parecido como um cozido à portuguesa, perdoem-me se estiver enganado.
Deixámos
Astorga e depois da ermida de
Ecce Homo, o caminho mete por montes e vales, e as abandonadas aldeias de
Santa Catalina, Somoza e El Ganso, sucedem-se, até chegar a
Rabanal del Caminho, que foi paragem obrigatória para os peregrinos se recomporem antes de entrar no
Monte Irago, sempre infestado de lobos de todas as espécies, mas que para nós é recordação de mais uma paragem para retemperar foças na
doida Méson Cowboy.
De facto, o enigma do palmípede ganso, que para os egípcios podia ser a alma dos faraós, para os celtas mensageiro do outro mundo, mantém-se ao longo do caminho. O caminho do ganso parece, efectivamente, confundir-se com o caminho das estrelas. Os
Montes de Oca, que encontrámos no quarto dia,
o Rio Oja, que primitivamente era igualmente
Oca e se transformou em
Rioja,
Paso de Oca,…
El Ganso, que agora ficou para trás e recordo como uma pequena aldeia isolada de casas colmadas, e onde se crê que o apóstolo Santiago celebrou missa, todos esse nomes parecem fazer parte do misterioso puzzle que desafia os efeitos corrosivos do tempo, e se mistura, mais uma vez, o pagão e o cristão.
Voltaram as paisagens agrestes, voltaram os bonitos e ondulantes
Montes de Leão, mas que criam maiores dificuldades. A maior do dia, como já referi, era a dita “Cruz de Ferro” que se ergue sóbria a 1500 metros de altitude. Confesso que até nem foi a mais cansativa, apesar de ser longa, os aclives são pouco acentuados. Sobe-se, sobe-se, sobe-se … passa-se
Foncebadón, mais uma bonita aldeia de casas celtas, redondas e colmadas, envolta numa ampla paisagem verde, pintalgada de amarelo intenso pelas vistosas maias, toma-se um
café solo na T
aberna de Gaia, pedala-se durante mais vinte minutos, mete-se pela estrada da esquerda, aquela que sobe mais e chega-se ao topo. Depois é sempre a descer, até
Molinaseca, onde, paradoxalmente, chegámos completamente molhados. A meio das vertiginosas descidas, com cerca de 17 Km, a chuva intensifica-se, fustiga-nos a face e abriga-nos a parar num maravilhoso restaurante, provavelmente único, numa das pitorescas aldeias da serra,
El Acebo, onde abandonámos os
bocadillos e nos deliciámos com uma maravilhosa sopa de truta e outros petiscos quentes. Três da tarde. O dia mantém-se cinzento mas a chuva amainou. É melhor aproveitar, pensámos todos.
Segundo vislumbre: o castelo
Templário de Ponferrada, também ela ligada, desde há séculos, ao caminho, onde chegámos, molhados, arrepiados, cansados e com uma vontade de chegar depressa. E sem tempo, nem vontade para contemplações histórico-culturais metemos por caminhos enlameados, ladeados de frescos vinhedos até
Cacabelos.
BUEN CAMIÑO!